Engenharia Reversa
Parte IV - A Hora do Caçador
Duas horas da tarde, Zona de Exclusão IV. Três fugitivos, dois homens e uma mulher, correm por uma ruela repleta de sucata eletrônica e lixo biológico em decomposição. O chão é de terra batida com uma escassa vegetação, e a ruela é ladeada por um emaranhado de construções miseráveis, algumas com vários andares, mas todas com as paredes cheias de buracos e rachaduras, passando a incômoda impressão de que vão desmoronar a qualquer momento.
O solo é estranhamente quente e repleto de pequenas poças formadas por óleo lubrificante e chorume, erroneamente chamadas pelos habitantes do lugar de poças de piche. O ar é pesado, abafado e fiel à paisagem, apresentando um odor de carne putrefata temperado com aromas de ferrugem; não há o menor sinal de vento, nem sequer de uma leve brisa. Em total contraste o céu está aberto e azul, bonito de se ver, porém, o sol castiga toda a região aumentando ainda mais o insuportável calor e fazendo ferver as poças de piche.
As poucas pessoas que estão na ruela, ao perceberem os fugitivos, correm para suas casas rudimentares trancando-se nelas e observando o trio através de frestas nas janelas. Em uma das casas, um homem ativa um terminal de computadores bastante rudimentar. Ele digita alguns comandos, enviando uma mensagem, em seguida, desliga o equipamento e volta para a sua família, um pequeno sorriso se destaca em sua face, havia conseguido garantir meses de comida na mesa.
Dos três intrusos, o que chama mais a atenção é o que segue à frente do grupo, alto e forte, parece ser o líder. Ele veste um sobretudo negro feito de tecido térmico, o que mantém seu corpo livre do calor exterior, calça botas militares de aspecto pesado e tem o cabelo raspado, várias tatuagens em sua cabeça sinalizam que ele possui vivência nas ruas, é um samurai urbano, um tipo de profissional que pode ser contratado para trabalhos nada usuais ou que exijam a proteção armada do cliente. Neste momento, sua missão é tirar o casal de Vix e levá-los em segurança para um determinado lugar. Ele também possui um implante ocular, um modelo antigo, que projeta um monóculo metálico para fora de seu olho direito; carrega uma mochila nas costas e porta uma arma de aspecto intimidador, algum tipo de fuzil.
Mais atrás, correndo de mãos dadas com a mulher, segue o outro homem. É o menor dos três, magro, usa roupas caras em tons sóbrios, porém próprias para aquele tipo de terreno. Seu cabelo é negro e bem tratado, cortado à moda empresarial. Seus trejeitos e vestimentas o denunciam como um membro da elite rica de Vix, é um executivo. A mulher ao seu lado é esbelta e atraente, possui cabelos loiros presos em um rabo de cavalo, usa uma jaqueta azul também feita com tecido térmico e que possui a logomarca da VNR estampada nas costas. No rosto, um caro óculos de sol com lentes vermelhas inteligentes completa o visual da jovem engenheira.
Indiferentes aos olhares dos miseráveis habitantes do lugar, os três aumentam o ritmo e correm rapidamente para o final da ruela. Após alguns metros, a inclinação do terreno muda para uma subida quase íngreme, de forma que é impossível ver o que existe mais à frente. O samurai acelera e deixa os outros dois para trás. Ele sobe a inclinação com muita facilidade, denunciando que provavelmente usa algum tipo de implante cibernético nas pernas.
Depois de alguns minutos, o casal alcança o companheiro, chegando ao final da inclinação onde eles podem ver que ela termina em um terreno plano; enfim param para tomar fôlego. Então percebem um estranho fenômeno: uma imensa nuvem de fumaça de coloração roxa, semelhante a um nevoeiro, se ergue como uma muralha na frente dos três foragidos. Ela parece ter centenas de metros de largura por dezenas de metros de altura, e fica estranhamente parada, flutuando no ar abafado. O executivo, com grande perplexidade e bastante assustado é o primeiro a falar:
- Mas que porcaria é essa?
A mulher tira os óculos de sol e se aproxima um pouco da nuvem, após alguns segundos observando o fenômeno ela se vira para o namorado:
- Jorge, eu acho que são vapores tóxicos concentrados!
Por sua vez ele chega mais perto do samurai, que retirou a mochila das costas e está agachado procurando algo dentro dela.
- E agora, Malthus? Qual será nosso próximo passo? Como é que a gente vai atravessar essa… coisa?! Se ao menos ainda tivéssemos nossos CND’s, poderíamos acessar o sistema GeoMaps e procurar um outro caminho!
Ainda agachado e sem olhar para Jorge, o guerreiro responde em um tom áspero:
- Não seja estúpido! Se vocês usassem os CND’s estariam agora apodrecendo em uma prisão lá em Vix. E é bom se acostumarem a viver sem essas porcarias bio-digitais, o DNA de vocês está marcado; nunca mais poderão se conectar usando biosoftware. E para constar: não existe outro caminho.
O executivo fica ainda mais inquieto, mas sabe que Malthus está coberto de razão. Então ele olha para Marcela, que está pensativa. Ela devolve o olhar e começa a falar.
- Jorge, tenho certeza de que isso é uma nuvem de vapores tóxicos formada por resíduos que escapam das tubulações de abastecimento de Vix. Você se lembra daquele contrato de manutenção que fechamos com a empreiteira do Velázquez?
- Mas aquilo foi três anos atrás, Marcela. E isso aí na nossa frente - ele aponta para a nuvem - precisaria de pelo menos uns dez anos para ficar desse tamanho! É impossível que algumas fissuras na tubulação tenham…
Ela não o deixa terminar a frase, cheia de certezas, volta a falar:
- Jorge! Você não se lembra do relatório da engenharia? Um dos engenheiros disse que se o material de reposição fosse substituído por liga de flexmetal, como nós sugerimos, o gás no interior do sistema iria oxidar a estrutura em uma taxa exponencial, acelerando o processo de corrosão!
Ele arregala os olhos, medindo cada palavra dela, então olha para o chão e leva as mãos ao rosto, esfregando a testa suada.
- Você sabe o que tem aí dentro? Ou melhor, sabe que tipo de gás é esse ?
- Você só precisa saber que são letais - diz Malthus, ainda agachado e de costas para o casal, segurando algo.
- Ele tem razão, mas não dá para saber ao certo - afirma Marcela - tem pelo menos de três a cinco compostos químicos aí, todos podem matar quase que instantaneamente. Vai depender muito do que trafega dentro do tubo que está corroído. Podem ser resíduos industriais, lixo químico, ou até mesmo substâncias radioativas.
Jorge cruza os braços e olha para o céu. Então desabafa:
- Maldito contrato. Se eu soubesse que isso iria acontecer jamais o teria recomendado.
Então Malthus volta a falar, demonstrando certa ironia no tom de voz:
- Típico. Vocês só pensam mesmo no dinheiro, certo, Jorge? E o pior, roubando seus próprios chefes, que coisa mais feia! Mas o destino é implacável? Não é mesmo? Tá aí na sua frente a prova!
Jorge se irrita, ele se aproxima do guerreiro, que ainda está agachado e agora manuseia algum equipamento estranho.
- Não foi para isso que te contratei, Malthus!
- Relaxa, cara. Não deu pra deixar essa passar - ele solta uma pequena risada - de certa forma, você quase selou seu próprio destino…
Marcela se aproxima do namorado e segura em suas mãos, olhando fixa para ele.
- Deixa disso. A gente tem que pensar em alguma coisa…
Jorge a encara, mas fica sem palavras. Ele olha novamente para a imensa nuvem. Então Malthus finalmente fica de pé, virando-se para o casal. Em sua cabeça, uma estranha máscara cheia de engrenagens deu um aspecto ainda mais intimidador ao guerreiro, atraindo por completo a atenção dos jovens. Ele joga para cada um deles um artefato idêntico e então fala através de pequenos alto-falantes acoplados na máscara.
- Chega de papo furado! Agora vocês vão ter que enfrentar seus demônios de frente. Coloquem essas máscaras, elas vão filtrar o ar e nos manter vivos. Já passei por aqui centenas de vezes, faz parte do meu trabalho. Vamos!
O samurai avança decidido e rapidamente entra na nuvem, desaparecendo por completo. Jorge e Marcela se encaram por alguns segundos, com os olhos arregalados pela surpresa. Então ele exibe um pequeno sorriso e aponta para o local onde Malthus estava:
- Bem, acho que o problema foi resolvido. Esse cara pode ser um idiota convencido, mas parece que sabe das coisas.
- Eu não sei não, Jorge. Espero que ele realmente nos tire daqui, só isso.
O executivo vira a cabeça para os lados em uma negativa, e então fala colocando um braço no ombro esquerdo da namorada:
- Pelo menos uma vez na vida, Marcela, você pode ser um pouco mais positiva?
Ela dá de ombros. Então olha para a máscara em suas mãos. Os dois começam a andar em direção à nuvem.
O artefato é na verdade bem mais do que uma simples máscara de gás: ele protege toda a cabeça através de um capacete de aspecto industrial, se estendendo através do pescoço e moldando-se ao ombro. Vários circuitos e engrenagens estranhas contornam uma viseira negra de aspecto assustador, existe ainda uma pequena antena, posicionada no lado direito da cabeça. O equipamento foi claramente construído pensando-se muito mais na utilidade do que na estética, o que para Jorge e Marcela, acostumados ao design clean e sofisticado do mundo empresarial de Vix, parecia estranho, feio, e associado à tecnologia das ruas.
Depois de algumas tentativas, Jorge finalmente consegue colocar a máscara. Ele olha para a imensa nuvem e respira fundo, se adaptando ao pesado equipamento. Após hesitar por um segundo, entra com cautela dentro dos vapores tóxicos.
Marcela observa com um pouco de medo o corpo de Jorge desaparecendo no meio dos gases letais; ela sabe que eles também precisariam de roupas especiais, pois os vapores poderiam provocar queimaduras na pele se ficassem expostos por muito tempo, mas não fazia a menor ideia de quanto tempo levariam para atravessar a nuvem, eles tinham que confiar em Malthus.
A jovem mulher segura a máscara com as duas mãos. Ela examina o equipamento como se duvidasse de sua eficácia. Então, após pensar pela milésima vez que não havia outras opções, finalmente coloca cuidadosamente o pesado capacete, movendo-o de forma a ajustá-lo em sua cabeça.
Quando termina de fixar a máscara, ela escuta um estranho barulho, semelhante a um motor elétrico, são as bombas de filtragem iniciando o processo de purificação do ar. Inicialmente Marcela não consegue enxergar nada além da escuridão, como se estivesse com os olhos fechados, então uma série de números e letras começam a piscar na parte interna da viseira, revelando uma tela digital de modelo muito antigo e inicializando um sistema de vídeo. Uma imagem em preto e branco começa a se formar, rapidamente ficando nítida e exibindo toda a desolação do lugar. A nuvem de gases aparece bem na frente dela, como se fosse um grande monstro negro pronto para devorá-la.
Marcela treme por alguns segundos, mas então se força a recuperar o controle, focando nas informações que são exibidas na tela da viseira: os batimentos cardíacos dela e os dos outros dois, a distância em que está deles e o estado geral do equipamento. Ela repara que a sua pulsação e a de Jorge estão muito maiores do que a de Malthus, o que de certa forma lhe traz um pouco mais de tranquilidade, afinal o homem está calmo, deveria realmente saber o que estava fazendo.
A obsoleta tela digital a faz se lembrar do CND, dos displays virtuais projetadas na retina. Ela havia usado CND’s desde seus três anos de idade e agora nunca mais poderia usar um novamente, a sensação de estar offline, desplugada, era muito estranha, como se uma parte de seu corpo tivesse sido removida. Jorge, por outro lado, parecia se adaptar melhor. Então a voz dele ecou no rádio do equipamento:
- Marcela, cadê você? Anda logo, não temos o dia todo!
Ela respira fundo e com precaução avança em direção a nuvem, entrando lentamente. Logo se apavora, pois de imediato não consegue enxergar nada, então, no visor da máscara, o visor eletrônico começa a se adaptar ao ambiente, ajustando automaticamente o brilho e a nitidez, em segundos ela pode enxergar claramente o interior da nuvem, como se os vapores tóxicos não existissem mais.
O cenário não difere tanto do que eles haviam visto até agora: várias casas rudimentares, barracos e pequenos depósitos e pilhas de sucata se espalhando por um terreno plano, porém sem nenhuma rua ou ruela entre eles. Todas as construções possuem as paredes cobertas de sujeira e graxa, que as faz parecer ainda mais tristes e desoladas no vídeo em preto e branco do visor da máscara. A distância entre as construções é grande, com pequenos descampados separando conjuntos de casas germinadas. Mini-conteiners estão espalhados pelo chão sobre grandes poças de piche que fazem o lugar parecer um pântano. Marcela percebe que Jorge e o samurai são marcados eletronicamente: as imagens deles aparecem em um branco brilhante, e também ficam visíveis mesmo através de obstáculos. “Isso é legal”, ela pensa tentando se animar.
A jovem engenheira aperta o passo, andando mais rápido para alcançar os companheiros. Após alguns metros, começa a reparar melhor na paisagem, então percebe algo perturbador: o lugar está repleto de cadáveres enegrecidos. Espalhados por todos os lados, corpos de homens, mulheres e até crianças jazem nas poças de piche; outros estão nas portas das casas, e alguns caídos bem embaixo das janelas. Ao lado dos corpos, malas e mochilas mostram que as pessoas estavam tentando fugir às pressas. Marcela nunca havia presenciado em toda a sua vida uma cena tão pesada, tão agourenta. Ficou chocada, e para onde quer que olhasse, as faces contorcidas dos cadáveres pareciam estar gritando por socorro.
Logo entende o que aconteceu: a nuvem deveria estar se expandindo, os vapores brotando do chão sem nenhum aviso, e aquelas pessoas, em sua maioria expurgados, não tinham para onde ir, arriscando-se a viver perto dos gases tóxicos. Ela começa a se sentir mal, náuseas e ânsia de vômito sobem pela garganta. Então para de correr e se apoia em uma parede encardida de um barraco próximo. Tenta controlar a respiração mas seu coração acelera. Então ela se senta, acostando-se à parede imunda.
Ao seu lado percebe o corpo de um homem que morrera com uma expressão horrível. Ela vê de soslaio o rosto do cadáver, que parece ter sido carbonizado, transformando-se em uma espécie de estátua, um demônio que vai assombrá-la pelo resto de sua vida, então, aterrorizada, ela rapidamente olha para o outro lado. Sente calafrios por todo o corpo. Se lembra do contrato, onde a empreiteira iria utilizar material de segunda mão para realizar as manutenções no sistema de abastecimento da cidade, tubulações gigantescas que passam ali por baixo, e que agora estavam liberando toxinas terríveis. Por culpa dela e de Jorge o material utilizado nos reparos não aguentou, inocentes morreram e eles faturaram milhões. Marcela começa a chorar copiosamente, o visor da máscara fica embaçado ao mesmo tempo em que uma dor lacerante cresce em seu peito. Aos prantos, ela grita pelo namorado que não tarda em responder:
- Marcela! O quê está acontecendo? Você está...você está chorando?
- Jorge...Me tira daqui! Esse lugar...tanta gente morta - ela faz uma longa pausa e ele escuta sua respiração ofegante - e tudo isso por nossa culpa!
A voz do samurai entra no circuito, seco, ele se mostra insensível.
- Moça, não é hora de arrependimentos! Você deveria ter pensando nas consequências antes de agir. Cara, volta lá e pega sua mulher. Já perdemos tempo demais!
Jorge fica muito preocupado. Ele havia conhecido Marcela há alguns anos, em um trabalho de consultoria para a VNR. Os dois se apaixonaram e logo ela tomou conhecimento dos planos dele, que consistiam em roubar sistematicamente seus chefes e então fugir para a Europa. No começo ela relutou, mas com o tempo cedeu e o ajudou em dezenas de esquemas fraudulentos. Ao longo de dez anos os dois conseguiram levantar dinheiro suficiente para comprar um pequeno país, mas não foi tão fácil como Jorge imaginava, e por duas vezes eles quase foram apanhados. Para garantir a segurança do fruto de tanto “trabalho”, ele havia transferido toda a fortuna para um banco da Siracusa, localizado em um paraíso fiscal oculto. O sistema do banco criou uma senha gráfica de vinte símbolos, gravando dez deles no subconsciente de Jorge e a outra metade no subconsciente de Marcela, de forma que apenas os dois juntos poderiam por as mãos na bolada. Ele fez isso em parte para provar que a amava, mas também porque precisava muito dela para ter acesso aos contratos bilionários da VNR. Jorge jamais poderia permitir que ela fosse capturada, pois além de ser sua cúmplice, era também a única pessoa que ele realmente amava.
O executivo dá meia volta e começa a correr usando a marcação eletrônica do visor do seu capacete para localizar Marcela. Rapidamente chega até ela e então se agacha, abraçando-a por um momento; então ele tenta colocá-la de pé, mas ela resiste e o abraça de volta com mais força, tentando se aproximar dele o máximo possível, mas é impedida pela pesada máscara de gás.
- Jorge, a gente não deveria ter feito aquilo, já não precisávamos de tanto dinheiro! Essas pessoas pagaram pela nossa ganância - Ela olha ao redor, mostrando para o namorado as dezenas de corpos.
Preocupado mais em sair dali do que com suas ações passadas, ele tenta confortá-la:
- Marcela, não tinha como saber! Poderia ter sido em qualquer uma das Zonas de Exclusão, mas aquelas animais escolheram justamente essa. E os… - ele dá uma boa olhada ao redor, então respira fundo e continua - os moradores daqui são todos expurgados, eles sabiam do risco!
Ele percebe uma sombra se aproximando, olha rapidamente para trás e vê Malthus, que com um tom irritado grita pelo rádio da máscara:
- Mas que diabos vocês estão fazendo?
Nesse exato momento um alerta em vermelho começa a piscar nos visores eletrônicos das máscaras dos três. Jorge se levanta bruscamente. Assustado, ele olha para o samurai:
- O que está acontecendo agora?
- O que você acha? Fomos descobertos!
O samurai se agacha, pegando sua mochila e retirando dela um computador portátil, praticamente uma relíquia, algo que o casal só viu antes em filmes antigo.
Em seguida, ele também tira da mochila uma pequena antena e a conecta ao computador. Jorge olha várias vezes para Malthus, tentando entender o que o homem está fazendo, mas então ele percebe que Marcela começa a se recuperar. Ela ainda respira ofegante, tenta se levantar e ele a ajuda, virando-se totalmente para a mulher e abraçando-a.
- Eu jamais poderia imaginar que isso aconteceria. - Diz ela com a voz fraquejando - mas o que ele está fazendo?
- Marcela, querida, eles nos encontraram.
Jorge engole em seco, ele repara através do display os batimentos dos dois voltando a subir.
O samurai liga o computador e a pequena antena começa a girar sua parábola em 360 graus. Na tela do aparelho surge um tipo de mapa em forma de círculo, onde o centro é a posição atual em que a antena está, e também onde eles estão. Logo vários pontos vermelhos começam a aparecer ao redor do centro. Jorge olha para todos os lados, esperando encontrar mercenários armados, mas não consegue ver nada. Ainda abraçando Marcela ele olha amedrontado para o guerreiro:
- Malthus! Estamos cercados? Eu não consigo ver onde eles estão!
- Olhe para lá! - O samurai se levanta e aponta para o céu, ao mesmo tempo em que pega o seu fuzil.
Jorge vê objetos do tamanho de bolas de tênis, pequenas esferas, que flutuam no ar ao redor deles. Elas se movem de forma sincronizada, mas algumas fazem manobras complexas, parando no ar e então projetando-se rapidamente para outra posição, como um beija-flor. Jorge ainda percebe algo semelhante a um olho prateado em cada objeto, que as vezes emite uma espécie de flash. Então ele percebe: são drones de filmagem, dezenas deles.
O executivo fica pálido. Marcela também começa a perceber os drones, assuntando-se.
- É… É a Hora do Caçador, não é? - pergunta ele, tremendo - Os miseráveis colocaram nossas cabeças a prêmio...
Sério, Malthus parece não ouvir a pergunta, apenas fita o céu e prepara sua arma. Então o guerreiro puxa um cabo ótico que sai do fuzil e o liga na máscara, assim, as imagens da mira passam a ser transmitidas em tempo real para o visor eletrônico do capacete. Finalmente ele fala:
- Escutem os dois: entrem no barraco e fiquem lá até eu dar a ordem para vocês fugirem. Na parte de trás de suas máscaras existe um pequeno compartimento, dentro dele vão encontrar um mapa em papel que os levará a um túnel. Vocês precisam chegar a esse túnel custe o que custar.
Ainda um pouco ofegante, Marcela olha para Malthus e tenta argumentar com ele:
- Mas é suicídio enfrentar os caçadores de recompensa sozinho!
- É para isso que vocês me contrataram! Agora entrem logo lá! É a vida de vocês que está em jogo.
Malthus retira da cintura uma pistola de aparência poderosa, especialmente modificada por ele.
- Pegue isso, Jorge. Se as coisas ficarem feias não hesite em usá-la. Veja aqui - aponta para um botão circular do lado direito da pistola - isso é o seletor de tiro, regule-o para máximo dano.
Tremendamente sério, o executivo observa a arma e a pega rapidamente.
- Obrigado, Malthus.
O samurai dá as costas para o casal e segue em direção a um descampado próximo ao barraco, onde ele se posiciona atrás de um pequeno contêiner, aguardando seu inimigo.
Jorge e Marcela dão uma última olhada em Malthus, então se dão as mãos e entram rapidamente dentro do barraco, escondendo-se atrás de uma mesa de madeira que ele derruba para criar uma proteção rudimentar. Marcela olha para o namorado, ainda com lágrimas nos olhos ela diz:
- Me desculpa, eu...eu não queria que as coisas chegassem a esse ponto…
Jorge a abraça, mas o tom de sua resposta não consegue transmitir a segurança que ele esperava:
- Tá tudo bem, querida. Vai dar tudo certo.
As câmeras nos drones transmitem as imagens para milhões de pessoas ao redor do mundo, que através de um biosoftware pirata, assistem confortavelmente ao programa “A Hora do Caçador”, um reality show ilegal que mostra em tempo real uma disputa entre caçadores de recompensa. O participante que fizer o maior número de pontos na temporada recebe o incrível prêmio de 5 milhões de Bitcoins. A regra é, quanto mais espetacular e emocionante for uma captura, mais pontos o protagonista faz. E em algumas vezes os episódios terminavam com mortes brutais, principalmente quando o contrato especificava “vivo ou morto”.
Assim que o programa entra no ar, as fotos das pessoas procuradas, chamadas de presas, são exibidas para os espectadores e enviadas aos caçadores. Jorge e Marcela são as presas da vez, e uma das maiores recompensas da temporada está sendo oferecida pelo casal, vivos ou mortos, mas se forem capturados vivos há um generoso bônus.
Além da recompensa existem as apostas, onde milhares de pessoas arriscam pequenas fortunas em seus caçadores preferidos e, taxando essas apostas, a organização que criou o show ganha muito dinheiro. O caçador vencedor do episódio ainda leva um percentual das apostas daquela edição. Na verdade, a ideia da concepção do show tinha sido uma das mais bem sucedidas da década, criando milionários da noite para o dia.
Cada cidade-estado, país, corporação ou mesmo indivíduos endinheirados, divulgam uma lista de fugitivos procurados, onde colocam um preço pelo fora-da-lei, seja ele um criminoso ou alguém que se deu mal em um negócio com as pessoas erradas. Os fugitivos muitas vezes arrancavam seus CND’s, tornando-se irrastreáveis, e para capturá-los surgiram os primeiros caçadores de recompensa. No início era uma atividade pouco conhecida, mas assim que surgiu o show, os caçadores se transformaram em celebridades, e os governos acabaram fazendo vista grossa, apesar de muitas pessoas protestarem contra a violência sem limites apresentada.
Uma contagem regressiva é exibida em cima das imagens geradas a partir da Zona de Exclusão IV, os expectadores ao redor do mundo começam a ficar ansiosos e, então, a imagem muda para um cenário dentro de um estúdio clandestino, onde uma bela apresentadora cumprimenta a audiência.
Um placar é exibido, listando o ranking dos doze melhores competidores até o momento. Porém, para o show de hoje, apenas os dois primeiros poderão participar. Uma música agitada começa a tocar e imagens das caçadas anteriores preenchem as telas virtuais. Em suas casa as pessoas vibram, torcendo para que seus caçadores preferidos sejam logo exibidos.
Então uma voz masculina entra em cena, anunciando os dois primeiros colocados que disputarão a caçada da noite: “Em primeiro lugar, Yuri Webber, O Coveiro, líder da temporada com 455 pontos; em segundo, Dianna Di Médice, A Fúria, com 414 pontos.” A diferença entre os dois caçadores é extrema, enquanto Yuri aprecia a violência e a brutalidade, Dianna é a personificação da furtividade. Especialista na arte da camuflagem, a caçadora segue um rígido código de conduta.
Embora fossem mundialmente conhecidos, seus verdadeiros rostos e identidades jamais eram revelados. Eles usam avançadas armaduras biomecânicas, especialmente criadas para impressionar a audiência.
O volume da música aumenta, e várias imagens dos dois caçadores em ação tomam a tela. Cenas de capturas espetaculares fazem as pessoas delirarem em suas casas. Intercaladas com a ação frenética, as estatísticas de cada protagonista são exibidas e comparadas.
Os expectadores ficam maravilhados e as apostas atingem picos históricos, se dividindo entre “O Coveiro” e “A Fúria”, pois se Dianna conseguir capturar as presas assumirá a liderança do ranking.
Então a imagem corta para a transmissão ao vivo da Zona de Exclusão IV, onde dentro da nuvem de vapores tóxicos todos os drones focam em Malthus, dando closes em sua estranha máscara e em sua arma. Mensagens são exibidas nas telas virtuais, indagando os expectadores: Quem será esse homem? Será ele um oponente a altura para nossos formidáveis caçadores?
A audiência do programa atinge níveis estratosféricos.
Um grande flymob de aparência imponente entra rasante dentro da Zona de Exclusão. Em seu interior, Yuri Webber, conhecido como “O Coveiro”, aprecia um copo de whisky sentado confortavelmente um uma cara poltrona reclinável. Em suas retinas várias telas virtuais exibem imagens de homens e mulheres muito bem vestidos, de diferentes etnias e nacionalidades. São seus apostadores e os representantes dos contratantes. No centro da tela uma cifra milionária aumenta a cada segundo, ao lado dela uma sequência de fotos de Jorge e Marcela é exibida em loop, juntamente com várias informações sobre o casal.
O valor é muito alto, talvez o maior a que ele e seu sócio concorreram em todas as temporadas do programa, mas o caçador não liga muito para o dinheiro. É claro, era o fluxo de capital que comprava as armaduras, mantinha o flymob voando, pagava a equipe de técnicos ultra especializados e ainda preservava sua verdadeira identidade, mas o que realmente o motivava era a liberdade de poder concretizar aquilo que ele sabia fazer melhor: matar a sangue frio.
E mais inebriante do que isso era ser reconhecido e adorado por milhões de pessoas. Em sua mente, o Coveiro se via como um astro, um popstar da arte sombria e maldita que é o assassinato.
Ele olha concentrado para as fotos de Jorge e Marcela, imaginando como iria capturá-los e torturá-los antes do golpe final. De fato, em todas as edições do programa e mesmo antes de ser um caçador famoso, Yuri sempre entregava suas presas mortas, por vezes em pedaços. Quando o contratante requisitava que o fugitivo só tinha valor vivo e inteiro ele não pegava o contrato, pouco importando o valor do prêmio, e isso deixava Cassius, seu sócio e empresário, completamente maluco. Com o tempo esse detalhe peculiar se espalhou pelo meio e logo inventaram o apelido de Coveiro”, o que no fim das contas só aumentou sua fama e inflou seu ego.
Os pensamos sombrios de Yuri são abruptamente interrompidos por uma voz animada que invade os nano transmissores de áudio do CND:
- É isso aí, parceiro! Pegue os franguinhos que sessenta por cento dessa bolada toda vai direto para a sua conta! Mas tem um detalhe...
Yuri não gosta do que ouve, ele faz uma careta e bebe mais um gole do whisky. Do outro lado da tela virtual, Cassius passa as mãos nos cabelos loiros e compridos, um gesto que sempre faz quando está ansioso.
- Porra, tu entendeu a parada? Não podemos perder essa de jeito nenhum! A Máfia de Taiwan tá minha cola, cara, e eles apostaram uma grana preta que você vence hoje…
- Relaxa, sócio. Deixa comigo.
Yuri se desconecta, não dando tempo para o empresário dizer mais nada. Ele se levanta da cadeira no mesmo momento em que um técnico vestindo um macacão laranja entra na pequena sala, localizada na parte de trás do flymob.
- Senhor, está na hora. Recebemos a localização das presas e estamos prontos para colocá-lo em sua armadura.
O Coveiro pensa um pouco. Termina sua bebida saboreando lentamente o gosto amargo e forte do último gole, então se levanta e aproxima-se do técnico.
- Excelente, Henry. E a câmara de criopreservação?
É comum os caçadores usarem a criogenia para preservarem partes do corpo de suas vítimas, retiradas antes da entrega das mesmas aos contratantes e quando o acordo não especificava que elas deveriam estar inteiras. Nesses casos, os órgãos amputados eram vendidos por uma boa grana nos mercados negros.
- Ativada e funcionando nos parâmetros normais.
- Muito bom!
- E qual armadura o senhor vai usar hoje?
Yuri olha através de uma pequena janela para a desolação do lugar, então anda em direção a porta que leva ao próximo cômodo da nave, finalmente fala:
- Prepare a Nosferatu.
Malthus está bem protegido atrás do pequeno contêiner. Os drones-câmeras voam caoticamente ao redor dele, como um enxame de vespas pronto para atacar uma presa indefesa. Ele ativa o zoom eletrônico da arma e o regula para o máximo, assim consegue ver através de cada obstáculo em um raio de centenas de metros, como se estivesse em um grande terreno plano, dessa forma ele espera se adiantar ao seu oponente, ou oponentes.
“Caçadores-de-recompensa, como eu odeio essa raça”, pensa. Então uma imagem distante é captada pela tecnologia antiquada do seu equipamento: um estranho vulto, com mais de dois metros de altura, se aproxima do lugar. A imagem vai tomando forma, revelando ser o inimigo esperado. Alguns drones vão de encontro ao caçador e começam a filmá-lo, nesse exato instante, Yuri acelera os passos iniciando uma corrida até suas presas.
Malthus mira bem no inimigo, que a cada segundo se aproxima mais de sua posição. Muda a munição do fuzil para projeteis explosivos, adequados para uso contra alvos de metal.
O Coveiro avança com sua assustadora armadura como se fosse um tanque de guerra descontrolado em uma zona urbana, derrubando e destruindo tudo que encontra pela frente, provendo um verdadeiro espetáculo para os milhões de expectadores conectados ao programa.
Dentro da Nosferatu, ele tem a exata localização das presas e sabe que deverá derrotar um samurai urbano para chegar até elas. Isso só o deixa mais feliz, pois poderá fazer o que bem entender com o guerreiro das ruas.
Imagens de vários ângulos diferentes da terrível armadura são transmitidas em tempo real, deixando a audiência extasiada. A Nosferatu é na verdade uma antiga armadura de guerra do exército da União, que fora totalmente remodelada e adaptada para os dias atuais. Havia recebido uma nova couraça, melhor software e um exosqueleto japonês, que provia a força de cinquenta homens. Externamente recebeu uma pintura em vermelho, adornada com várias marcas tribais em branco. Crânios humanos cromados foram colocados ao longo das placas peitorais e nas juntas, criando um visual grotesco e assustador. O próprio capacete era um crânio estilizado, onde duas luzes vermelhas fantasmagóricas eram projetadas a partir dos olhos. No braço esquerdo existe uma metralhadora .50 acoplada, no braço direito, uma lâmina de flexmetal e um pequeno lançador de granadas. A mera visão daquela coisa já era por si só perturbadora, a máquina havia sido minuciosamente reformulada para causar pânico em suas vítimas.
Mais alguns barracos são derrubados, e logo o popstar assassino tem uma visão clara de Malthus, agachado atrás de sua proteção antiquada. O caçador ri, pois o samurai nem ao menos usa uma armadura. “Vou estripar esse desgraçado”, pensa Yuri.
O Coveiro ativa um scanner, examinando por completo o corpo de Malthus, a única coisa que encontra são implantes cibernéticos rudimentares, tecnologia ultrapassada. Realmente, não poderia esperar por nada tão fácil.
O samurai se levanta, ficando totalmente exposto ao inimigo. Em um movimento muito rápido, aponta o fuzil para o Coveiro e puxa o gatilho. Um projetil explosivo é disparado em velocidade supersônica. Dentro do barraco próximo, Jorge e Marcela se assustam ao ouvirem o forte estrondo da explosão da cápsula.
O tiro certeiro atinge a cabeça da armadura Nosferatu, produzindo uma explosão e causando uma pane momentânea nos sistemas digitais da máquina de matar. Yuri fica desorientado, as imagens dentro do capacete se embaralham, dezenas de códigos de erro são exibidos sem parar. Os expectadores do programa também estouram em clamores e brados de pura emoção, imaginando se o Coveiro havia sido finalmente derrotado.
Malthus sai de sua proteção. Ele deixa para trás o sobretudo térmico revelando que usa um leve colete de kevlar; em suas costas, o cabo de uma Katana pode ser visto dentro de uma bainha. O samurai recalibra seus implantes bio-mecânicos nas pernas, atingindo o desempenho máximo dos mesmos, então se lança em uma corrida em direção ao inimigo.
Ainda desnorteado, Yuri percebe que se tornou um alvo fácil, então ele tenta ativar a .50 com um pensamento. Por sorte a rede bio-digital da armadura ainda está funcionando, e a metralhadora começa a cuspir fogo em todas as direções.
Malthus se aproxima do inimigo e ao perceber o leque de fogo formado pelos disparos desorientados da metralhadora, usa toda sua força para executar um salto, ele consegue, mas é atingindo na perna esquerda. O tiro atravessa a carne abrindo um grande buraco que deixa exposto o implante cibernérico que substitui o fêmur. Ele grita de dor, mas em pleno o ar dispara novamente contra o Coveiro, esvaziando o pente do fuzil e acertando vários tiros no peito da armadura. O impacto das explosões derruba Yuri, que cai em uma poça de piche com a couraça frontal expelindo uma fumaça negra.
Em um movimento extremamente rápido, Malthus larga o fuzil e saca sua Katana, segurando-a com as duas mãos acima da cabeça, posicionado a lâmina inteiramente para baixo, como se fosse um grande ferrão mortífero. Ele então cai bem em cima da Nosferatu avariada, fincando a espada contra o metal do peito da armadura.
- Fujam agora! - A ordem chega aos alto-falantes das máscaras de Jorge e Marcela, que prontamente saem correndo de dentro do barraco, com os mapas em suas mãos.
-Desgraçado! - Grita Yuri, enfurecido.
A Katana atravessa os cinco centímetros da blindagem, atingindo o corpo do caçador, protegido apenas por uma fina malha sintética. O samurai força mais ainda a lâmina, vislumbrando uma inacreditável vitória, mas as engrenagens do braço esquerdo da armadura do inimigo entram em ação, produzindo um violento soco que atinge em cheio a cabeça de Malthus, amaçando sua máscara de gás e fazendo-o voar por alguns metros.
O soco é tão forte que o samurai chega a perder a consciência por alguns instantes. Rapidamente Yuri se levanta e corre em direção ao corpo de Malthus, então projeta um violento chute contra as costelas do homem, lançando-o contra a parede do barraco onde Jorge e Marcela estavam.
Então o Coveiro pega Malthus pelo pescoço, levantando-o e fazendo-o girar no ar, para em seguida jogá-lo de costas contra o chão. O impacto destrói a coluna vertebral do samurai. A eficiência da máscara de gás cai para menos de 10%, indicando colapso eminente.
- Agora vamos ver quem é você, seu merda.
O algoz vestido em metal segura forte com as duas as mãos a máscara e começa a removê-la. Malthus é acometido por uma dor terrível, insana, pois vários de seus órgãos foram danificados com a pancada. Mas não, ele não morreria sem lutar, não daria para o inimigo o prazer de matá-lo. Em um último gesto, o guerreiro das ruas retira um pequeno objeto em forma de disco de um de seus bolsos e rapidamente o prende contra a armadura de Yuri.
Segundos depois, o coveiro remove por completo a máscara de gás, revelando o rosto cheio de cicatrizes e os olhos verdes e cansados de Malhus. Os drones-cameras estão todos em volta dos dois, não deixando escapar nenhum segundo da ação.
É o fim do samurai urbano; gases tóxicos entram queimando em sua garganta enquanto seu corpo é acometido por uma dor terrível. A última coisa que ele vê é Yuri tentando remover o objeto grudado em sua armadura. Então uma forte explosão brota do pequeno aparelho circular, produzindo uma nuvem de fogo que vaporiza o corpo de Malthus e destrói a maioria das camêras-drone. Aquilo era uma granada térmica, e Yuri descobre dá pior maneira possível.
O corpo do caçador ferve, as chamas projetam-se por toda a Nosferatu, destruindo parte da camada de proteção exterior e danificando vários sistemas.
Os drones restantes se afastam e então focalizam o desespero do homem em chamas, que rola no chão tentando apagar o fogo. Em suas confortáveis residências, os expectadores estão boquiabertos, impressionados com o terrível destino de um dos mais famosos protagonistas do programa.
Então o imenso flymob do time do Coveiro entra no pequeno descampado. Uma rampa se abre em baixo do veículo, dois técnicos vestidos em trajes protetores saltam da nave e correm em direção ao caçador. Munidos de tanques de gás carbônico, fixados nas costas, os técnicos usam pequenas mangueiras para expelir o composto sobre o corpo do Coveiro, extinguindo as chamas e revelando o terrível estrago causado na Nosferatu, que apesar de chamuscada, ainda funciona. Yuri então se levanta, comprovando o que os técnicos já sabiam: a armadura havia resistido ao calor, os danos não comprometeram totalmente a máquina, exatamente como os projetistas haviam garantido.
Jorge e Marcela apenas ouvem os disparos e a explosão da granada térmica, eles agora correm em direção a uma grande estrutura que parece ser algum tipo de moinho, e que segundo o mapa, é onde está a entrada para o túnel que os tirará dali, levando-os para a segurança.
Eles param para recuperar o fôlego, a apenas dez metros da entrada do moinho. Os dois estão exaustos, e percebem que agora estão sozinhos, pois os sinais vitais de Malthus desapareceram do display interno das máscaras. Então alguns drones começam a aparecer, muitos se posicionam entre o casal e a entrada do prédio.
- Droga! Essas pestes de novo!
- Jorge, Malthus está morto! Temos que entrar lá de qualquer maneira, seja lá quem for o caçador de recompensas ele logo vai nos encontrar.
- Sim, eu sei disso tudo, Marcela, mas quero acabar com esses drones miseráveis!
O executivo, tomado pela raiva, saca a pistola que lhe foi dada por Malthus e então dispara contra os pequenos robôs, atingindo vários deles que caem inertes no terreno imundo. Os outros se afastam, voando em manobras evasivas e circulando o casal.
Os dois avançam, Jorge vai à frente empunhando a pistola. Eles estão quase chegando na entrada do prédio e uma faísca de esperança se acende em seus corações, a fuga era possível. Então, inesperadamente, Jorge sente um forte chute contra seu abdômen, como se tivesse sido atingindo por alguma coisa invisível. Ele cai e rola no chão, deixando a pistola escapar. A dor é terrível, e o executivo cospe um punhado de sangue, atônito.
Sem entender o que acontecera, Marcela para de correr e olha assustada para todos os lados. O executivo então se projeta para o lugar onde a pistola estava, pegando a arma e a apontado em várias direções. Então ele é atingindo novamente, dessa vez por um forte soco no rosto, um cruzado de direita, que arranca mais sangue de sua boa, porém, num ato de reflexo puxa o gatilho da arma, disparando um projétil que ricocheteia em alguma coisa.
Instintivamente, Jorge se esgueira para trás, usando suas pernas e braços para se afastar ao máximo do misterioso atacante. Uma imagem espectral começa a se formar. Raios amarelos aparecem do nada em pleno ar poluído, revelando uma forma feminina, que logo se materializa em uma incrível armadura branca, ornada com detalhes em dourado e com um visual impressionante, que lembra em vários aspectos um centurião dos tempos de Roma.
O capacete da armadura é exatamente um elmo romano, com sua crista vermelha exuberante, porém, o rosto é todo protegido por uma máscara que lembra uma escultura facial de um belo rosto de mulher, em um tipo de metal semelhante ao bronze. No dorso da caçadora, um rifle de plasma se faz notar, fixado à couraça através de ímãs eletrônicos.
Jorge reconhece a armadura, é a Gladium VI. Ele não tem mais dúvidas: está diante de Dianna Di Médice, A Fúria. Só tem tempo de gritar para Marcela fugir dali o mais rápido possível.
Como uma leoa em um dia de caça, a Fúria se aproxima do homem decidida a capturá-lo, por sua vez, ele dá vários tiros contra ela, descarregando o pente, mas todos os disparos são inúteis contra a poderosa armadura. Dianna aponta seu braço esquerdo, revelando um lançador de projeteis. Então ela dispara contra Jorge, acertando em cheio um dardo tranquilizante no peito do executivo. Em questão de segundos, ele entra em um estado letárgico, perdendo a consciência rapidamente. Ainda consegue olhar para Marcela, que está agora correndo o máximo que pode na direção contrária.
Do outro lado das câmeras dos drones, a audiência entre em frenesi, principalmente aqueles que apostaram na caçadora italiana. A aparição da Fúria foi surpreendente, épica.
Marcela sabe que não tem muitas chances, o jeito é correr o máximo possível e procurar algum lugar para se esconder. Olhando de relance para trás, percebe um flymob se aproximando do corpo de Jorge, provavelmente é a equipe da Fúria. Então ela vê a caçadora vindo em seu encalço.
Desesperada, a engenheira tenta alcançar uma residência próxima, que ela se lembrava de estar repleta de antigos móveis. Com alguma sorte, poderia utilizá-los para bloquear a porta da sala, possibilitando algum tempo para escapulir pela cozinha e tentar despistar sua perseguidora.
Então, em um forte estrondo, toda a parede da frente da casa desaba, revelando uma imensa armadura vermelha, muito chamuscada e cheia de marcas de tiro. Marcela percebe naquele momento que está tudo acabado.
O Coveiro avança em sua direção, disparando contra ela uma estranha arma, uma rede elétrica. Extremamente cansada, a jovem não esboça a menor reação, sendo facilmente capturada pelo assassino de Malthus.
Vendo a cena, Dianna interrompe sua corrida e saca seu rifle de plasma, apontando-o para o Coveiro.
- Me entregue a mulher, Yuri, ou vou terminar o serviço do samurai urbano, mandando você direto para o inferno, que aliás, é o lugar de onde você nunca deveria ter saído.
A voz da Fúria soa sintetizada, mas mesmo assim a ameaça se fez sentir, e o Coveiro sabe que a arma de plasma poderia ser fatal dado o lastimável estado de sua armadura. Pensou rápido, enviando uma mensagem para sua equipe que aguardava ali perto, dentro do flymob. Encarou sua oponente, provocando-a em um tom bravio:
- Você a quer, Fúria Então coloca essa sua armadura de merda para funcionar e venha pegá-la!
Yuri se aproxima do corpo aprisionado de Marcela, e com um rápido movimento, pega a jovem e a coloca em suas costas. Em seguida, ele direciona a .50 para sua inimiga e dispara a arma, produzindo uma mortífera rajada de balas.
Dianna não pode atirar, pois se o fizer atingirá também Marcela, que terá grandes chances de morrer. O Coveiro sabia disso, era o tal “código-de-honra”, uma tremenda besteira para ele, mas que agora veio bem a calhar pois salvaria sua pele.
A Fúria corre, escapando formidavelmente da rajada de tiros. Sua armadura não é muito forte, na verdade poderia ser facilmente destruída pela Nosferatu em um combate corpo-a-corpo, mas a velocidade e a agilidade contrabalançavam essa falha, fazendo de Dianna em sua Gladium VI uma arma letal.
Agora ela teria que derrubar o Coveiro. Então se lança ao chão, protegendo-se dos tiros junto a um pequeno monte de sucata. Pega uma granada de choque, das seis que Gladium possui, em seguida, lança a bomba com extrema precisão contra a posição de Yuri, esperando que a onda de choque o desoriente.
O caçador vê a granada em pleno ar e a acerta com um tiro preciso, o artefato explode, produzindo uma violenta onda de choque que consegue derrubar a Nosferatu juntamente com sua presa. Marcela cai ao lado de seu algoz, desacordada. Yuri tenta se levantar, apoiando-se em uma perna.
Dianna sai da proteção, chegou a hora do contra-ataque. A Gladium move-se velozmente na direção de Yuri, pronta para nocauteá-lo com um chute certeiro em sua cabeça e assim concluir a caçada, porém, ela para de correr abruptamente ao ver uma imensa nave surgindo em meio aos gases tóxicos. O flymob se posiciona sobre o Coveiro, e então sua rampa inferior se abre, revelando um grupo de técnicos que descem rapidamente para socorrer seu chefe.
- Mas que filho da mãe!
A Fúria saca seu rifle de plasma e o aponta para o veículo, que responde exibindo dois potentes canhões que saem de compartimentos secretos na fuselagem da nave. Eles miram em Dianna, e logo uma chama azul começa a ser produzida no interior das armas.
Aquilo era um golpe baixo, não havia realmente nenhuma honra na conduta do Coveiro. A Fúria sabe que não tem nenhuma chance, então ela mentaliza a palavra “máxima eficiência”, para em seguida acelerar todos os motores de sua armadura e correr em direção ao grande moinho, onde poderia encontrar o túnel almejado por Jorge e Marcela e que agora era sua salvação. Seu flymob já estava longe, e ela não poderia correr o risco dele ser atacado pela nave do Coveiro, muito mais poderosa.
Os canhões abrem fogo, transformando o lugar em um pequeno inferno. Explosões levantam grandes quantidades de terra e lama, perseguindo Dianna como se ela fosse a presa da vez. Um dos tiros quase a atinge, fazendo-a voar por vários metros. Ao longe, o Coveiro ri do destino de sua colega de profissão, sendo amparado por seus técnicos que o levam para dentro da nave debaixo da salva de tiros incessantes.
A caçadora consegue executar uma cambalhota no ar e cai bem na entrada do Moinho. Ela se lança para dentro do prédio, correndo por uma grande sala em direção ao que parece ser a entrada do subsolo. Mas os cruéis canhões não dão trégua, e atiram com tudo contra a estrutura, explodindo o prédio e o derrubando por completo.
Milhões de expectadores ao redor mundo ficam paralisados, pasmos com o que acabaram de assistir. Definitivamente, aquele momento foi o maior clímax de todas as temporadas do show.
Dentro de seu flymob, Yuri e seus técnicos comemoram a possível morte da Fúria. Então a nave inicia os procedimentos para sair da nuvem de gases. Os canhões são recolhidos e ela começa a voar em trajetória ascendente. Marcela é retirada da rede elétrica, sendo levada ainda desacordada para uma cela quase medieval, onde é acorrentada à parede.
Na oficina da nave, o Coveiro senta-se em uma grande cadeira, onde a equipe de técnicos o cerca e começa a desmontar a armadura, removendo peça por peça. Ele tira o capacete, que esta terrivelmente avariado. Coça os olhos e olha para Henry, que tem uma caixa de charutos nas mãos. Yuri pega um deles e o ascende, tentando relaxar. As coisas não saíram como o planejado, mas pelo menos sua inimiga deveria ter morrido. Agora, ele precisa recuperar a outra presa, o executivo Jorge, que poderia estar em qualquer lugar. Então um dos técnicos chama sua atenção:
- Chefe, veja! - o homem aponta para um monitor - ela está viva!
- Mas isso é impossível! - esbraveja Yuri.
O técnico aponta para uma tela, onde a imagem de Dianna saindo dos escombros e mostrada em vários ângulos.
O Coveiro é tomado por uma raiva irracional, ele olha para o técnico chefe, e após dar uma forte tragada no charuto dirige a palavra ao homem:
- Henry, para onde o flymob da Fúria foi ?
- Nós conseguimos rastrear o veículo por dez quilômetros, senhor, então ele saiu do alcance. Por sua última posição, presumimos que tenha se dirigido para Vix.
- Porra! Então vocês o perderam?
- Ele é rápido, senhor, muito rápido.
O caçador quase se levanta da cadeira, pronto para esganar Henry, mas a batalha havia sido dura, e seu corpo doía. Precisa se controlar, relaxar e esvaziar a mente. Mesmo se conseguisse capturar a Fúria, ela jamais revelaria a localização da outra presa.
Então muitas telas virtuais se ativam e pipocam em suas retinas, indicando que a conexão com a armadura havia terminado, liberando o sistema do CND. Dezenas de mensagens são exibidas. Elas são representadas por ícones diversos e organizadas por data e hora. Uma chamada em tempo real aguarda aceitação, era Cassius, provavelmente irado com o resultado da caçada. Porém, dentre as todas as mensagens, uma em especial chama a atenção de Yuri: um ícone estilizado de um leão em dourado. É o símbolo de Maestro, a quem ele devia vários favores.
Yuri foca mentalmente no ícone, abrindo a mensagem. A imagem de um garoto ruivo, com as bochechas cheias de sardas é exibida. “Thiago Klein, o Hacker de Maestro”, pensa Yuri. “O que será que ele quer comigo? E justo agora?”
Visivelmente ansioso, o rapaz transmite a mensagem rapidamente, não levando mais do que vinte segundos:
“Senhor Coveiro, Maestro precisa da sua ajuda, possivelmente hoje ainda. Um arquivo encriptado com os detalhes dá operação está anexado a esta mensagem. Tenha um bom dia”.
Maestro possui uma das organizações mais poderosas de Vix, uma rede vasta de recursos e contatos importantes. Ele poderia ser um valioso aliado na luta contra a Fúria. Yuri se anima com essa possibilidade, visualiza o arquivo encriptado e pensa na senha especial utilizada para a comunicação com o pessoal de Maestro. O arquivo se abre revelando uma série de dados e fotos: corporação VNR, um bio-hacker chamado de Vampiro, mas que usa o nome falso de Davi, uma bela executiva morena de ascendência oriental, uma agente de segurança com passagem pelas forças especiais, o mítico programa KDCode...
“Interessante, senhor Maestro, acho que vamos trabalhar juntos de novo”.
Enfim os técnicos terminam de remover a armadura, e Yuri se levanta, dirigindo-se para a cabine da nave. No caminho ele passa pela cela onde Marcela foi acorrentada. Ela se assusta ao ver o homem, que está com um aspecto horrível. Ela deduz ser ele o seu captor.
- Não fique assim, loirinha. Logo logo você vai se encontrar com aquele bosta do seu namorado. Eu garanto isso.
Yuri dá uma boa olhada nela, imaginando que seria gratificante torturá-la, mas não, não era o momento ainda. Ele se afasta, assobiando descontraidamente uma melodia qualquer.
Marcela pensa em Jorge, nos sonhos dos dois. Mas agora tudo estava perdido, agora ela só poderia rezar. Então um pensamento brotou em sua mente: aquilo deveria ser algum tipo de punição, o preço a pagar pelos pecados que ela e Jorge cometeram. Ela se lembra dos corpos dos expurgados, de suas faces mortas acometidas pelo terror, pelo pânico. Marcela se joga no chão da cela e começa a chorar, afogada em uma confusão de sentimentos sombrios.
No estúdio da Hora do Caçador todos estão impressionados com o episódio. A bela apresentadora entra em cena, acompanhada de um comentarista de aparência jovial. Ambos com expressões entusiasmadas.
- Meu Deus, Greg, eu estou chocada com o desfecho do show de hoje! Não acredito que a Fúria tenha conseguido escapar!
- Minha nossa, Samantha, foi incrível! Eu só tenho a dizer que estou torcendo muito por ela!
- Mas e agora? O que vai acontecer? Nenhum dos dois marcou pontos, certo?
- Exatamente. O caçador só pontua se entregar a presa como o contrato estipula, e nesse caso, o casal é a presa!
- Então não vamos acabar por aqui, certo?
- É claro que não, Sam. Uma nova rodada de apostas será aberta, e assim que um dos dois caçadores entrar em ação, eles deverão nos contactar para que possamos enviar nossos drones, então teremos uma transmissão excepcional e ao vivo, que pode acontecer a qualquer momento!
- Sensacional, Greg! Acho que nunca tivemos um show tão emocionante!
Greg gesticula em concordância com sua colega, então ela olha para a câmera e dá um lindo sorriso, pronunciado suas palavras finais:
- Muito obrigada por assistirem A Hora do Caçador. A ação está só começando, até breve!
O solo é estranhamente quente e repleto de pequenas poças formadas por óleo lubrificante e chorume, erroneamente chamadas pelos habitantes do lugar de poças de piche. O ar é pesado, abafado e fiel à paisagem, apresentando um odor de carne putrefata temperado com aromas de ferrugem; não há o menor sinal de vento, nem sequer de uma leve brisa. Em total contraste o céu está aberto e azul, bonito de se ver, porém, o sol castiga toda a região aumentando ainda mais o insuportável calor e fazendo ferver as poças de piche.
As poucas pessoas que estão na ruela, ao perceberem os fugitivos, correm para suas casas rudimentares trancando-se nelas e observando o trio através de frestas nas janelas. Em uma das casas, um homem ativa um terminal de computadores bastante rudimentar. Ele digita alguns comandos, enviando uma mensagem, em seguida, desliga o equipamento e volta para a sua família, um pequeno sorriso se destaca em sua face, havia conseguido garantir meses de comida na mesa.
Dos três intrusos, o que chama mais a atenção é o que segue à frente do grupo, alto e forte, parece ser o líder. Ele veste um sobretudo negro feito de tecido térmico, o que mantém seu corpo livre do calor exterior, calça botas militares de aspecto pesado e tem o cabelo raspado, várias tatuagens em sua cabeça sinalizam que ele possui vivência nas ruas, é um samurai urbano, um tipo de profissional que pode ser contratado para trabalhos nada usuais ou que exijam a proteção armada do cliente. Neste momento, sua missão é tirar o casal de Vix e levá-los em segurança para um determinado lugar. Ele também possui um implante ocular, um modelo antigo, que projeta um monóculo metálico para fora de seu olho direito; carrega uma mochila nas costas e porta uma arma de aspecto intimidador, algum tipo de fuzil.
Mais atrás, correndo de mãos dadas com a mulher, segue o outro homem. É o menor dos três, magro, usa roupas caras em tons sóbrios, porém próprias para aquele tipo de terreno. Seu cabelo é negro e bem tratado, cortado à moda empresarial. Seus trejeitos e vestimentas o denunciam como um membro da elite rica de Vix, é um executivo. A mulher ao seu lado é esbelta e atraente, possui cabelos loiros presos em um rabo de cavalo, usa uma jaqueta azul também feita com tecido térmico e que possui a logomarca da VNR estampada nas costas. No rosto, um caro óculos de sol com lentes vermelhas inteligentes completa o visual da jovem engenheira.
Indiferentes aos olhares dos miseráveis habitantes do lugar, os três aumentam o ritmo e correm rapidamente para o final da ruela. Após alguns metros, a inclinação do terreno muda para uma subida quase íngreme, de forma que é impossível ver o que existe mais à frente. O samurai acelera e deixa os outros dois para trás. Ele sobe a inclinação com muita facilidade, denunciando que provavelmente usa algum tipo de implante cibernético nas pernas.
Depois de alguns minutos, o casal alcança o companheiro, chegando ao final da inclinação onde eles podem ver que ela termina em um terreno plano; enfim param para tomar fôlego. Então percebem um estranho fenômeno: uma imensa nuvem de fumaça de coloração roxa, semelhante a um nevoeiro, se ergue como uma muralha na frente dos três foragidos. Ela parece ter centenas de metros de largura por dezenas de metros de altura, e fica estranhamente parada, flutuando no ar abafado. O executivo, com grande perplexidade e bastante assustado é o primeiro a falar:
- Mas que porcaria é essa?
A mulher tira os óculos de sol e se aproxima um pouco da nuvem, após alguns segundos observando o fenômeno ela se vira para o namorado:
- Jorge, eu acho que são vapores tóxicos concentrados!
Por sua vez ele chega mais perto do samurai, que retirou a mochila das costas e está agachado procurando algo dentro dela.
- E agora, Malthus? Qual será nosso próximo passo? Como é que a gente vai atravessar essa… coisa?! Se ao menos ainda tivéssemos nossos CND’s, poderíamos acessar o sistema GeoMaps e procurar um outro caminho!
Ainda agachado e sem olhar para Jorge, o guerreiro responde em um tom áspero:
- Não seja estúpido! Se vocês usassem os CND’s estariam agora apodrecendo em uma prisão lá em Vix. E é bom se acostumarem a viver sem essas porcarias bio-digitais, o DNA de vocês está marcado; nunca mais poderão se conectar usando biosoftware. E para constar: não existe outro caminho.
O executivo fica ainda mais inquieto, mas sabe que Malthus está coberto de razão. Então ele olha para Marcela, que está pensativa. Ela devolve o olhar e começa a falar.
- Jorge, tenho certeza de que isso é uma nuvem de vapores tóxicos formada por resíduos que escapam das tubulações de abastecimento de Vix. Você se lembra daquele contrato de manutenção que fechamos com a empreiteira do Velázquez?
- Mas aquilo foi três anos atrás, Marcela. E isso aí na nossa frente - ele aponta para a nuvem - precisaria de pelo menos uns dez anos para ficar desse tamanho! É impossível que algumas fissuras na tubulação tenham…
Ela não o deixa terminar a frase, cheia de certezas, volta a falar:
- Jorge! Você não se lembra do relatório da engenharia? Um dos engenheiros disse que se o material de reposição fosse substituído por liga de flexmetal, como nós sugerimos, o gás no interior do sistema iria oxidar a estrutura em uma taxa exponencial, acelerando o processo de corrosão!
Ele arregala os olhos, medindo cada palavra dela, então olha para o chão e leva as mãos ao rosto, esfregando a testa suada.
- Você sabe o que tem aí dentro? Ou melhor, sabe que tipo de gás é esse ?
- Você só precisa saber que são letais - diz Malthus, ainda agachado e de costas para o casal, segurando algo.
- Ele tem razão, mas não dá para saber ao certo - afirma Marcela - tem pelo menos de três a cinco compostos químicos aí, todos podem matar quase que instantaneamente. Vai depender muito do que trafega dentro do tubo que está corroído. Podem ser resíduos industriais, lixo químico, ou até mesmo substâncias radioativas.
Jorge cruza os braços e olha para o céu. Então desabafa:
- Maldito contrato. Se eu soubesse que isso iria acontecer jamais o teria recomendado.
Então Malthus volta a falar, demonstrando certa ironia no tom de voz:
- Típico. Vocês só pensam mesmo no dinheiro, certo, Jorge? E o pior, roubando seus próprios chefes, que coisa mais feia! Mas o destino é implacável? Não é mesmo? Tá aí na sua frente a prova!
Jorge se irrita, ele se aproxima do guerreiro, que ainda está agachado e agora manuseia algum equipamento estranho.
- Não foi para isso que te contratei, Malthus!
- Relaxa, cara. Não deu pra deixar essa passar - ele solta uma pequena risada - de certa forma, você quase selou seu próprio destino…
Marcela se aproxima do namorado e segura em suas mãos, olhando fixa para ele.
- Deixa disso. A gente tem que pensar em alguma coisa…
Jorge a encara, mas fica sem palavras. Ele olha novamente para a imensa nuvem. Então Malthus finalmente fica de pé, virando-se para o casal. Em sua cabeça, uma estranha máscara cheia de engrenagens deu um aspecto ainda mais intimidador ao guerreiro, atraindo por completo a atenção dos jovens. Ele joga para cada um deles um artefato idêntico e então fala através de pequenos alto-falantes acoplados na máscara.
- Chega de papo furado! Agora vocês vão ter que enfrentar seus demônios de frente. Coloquem essas máscaras, elas vão filtrar o ar e nos manter vivos. Já passei por aqui centenas de vezes, faz parte do meu trabalho. Vamos!
O samurai avança decidido e rapidamente entra na nuvem, desaparecendo por completo. Jorge e Marcela se encaram por alguns segundos, com os olhos arregalados pela surpresa. Então ele exibe um pequeno sorriso e aponta para o local onde Malthus estava:
- Bem, acho que o problema foi resolvido. Esse cara pode ser um idiota convencido, mas parece que sabe das coisas.
- Eu não sei não, Jorge. Espero que ele realmente nos tire daqui, só isso.
O executivo vira a cabeça para os lados em uma negativa, e então fala colocando um braço no ombro esquerdo da namorada:
- Pelo menos uma vez na vida, Marcela, você pode ser um pouco mais positiva?
Ela dá de ombros. Então olha para a máscara em suas mãos. Os dois começam a andar em direção à nuvem.
O artefato é na verdade bem mais do que uma simples máscara de gás: ele protege toda a cabeça através de um capacete de aspecto industrial, se estendendo através do pescoço e moldando-se ao ombro. Vários circuitos e engrenagens estranhas contornam uma viseira negra de aspecto assustador, existe ainda uma pequena antena, posicionada no lado direito da cabeça. O equipamento foi claramente construído pensando-se muito mais na utilidade do que na estética, o que para Jorge e Marcela, acostumados ao design clean e sofisticado do mundo empresarial de Vix, parecia estranho, feio, e associado à tecnologia das ruas.
Depois de algumas tentativas, Jorge finalmente consegue colocar a máscara. Ele olha para a imensa nuvem e respira fundo, se adaptando ao pesado equipamento. Após hesitar por um segundo, entra com cautela dentro dos vapores tóxicos.
Marcela observa com um pouco de medo o corpo de Jorge desaparecendo no meio dos gases letais; ela sabe que eles também precisariam de roupas especiais, pois os vapores poderiam provocar queimaduras na pele se ficassem expostos por muito tempo, mas não fazia a menor ideia de quanto tempo levariam para atravessar a nuvem, eles tinham que confiar em Malthus.
A jovem mulher segura a máscara com as duas mãos. Ela examina o equipamento como se duvidasse de sua eficácia. Então, após pensar pela milésima vez que não havia outras opções, finalmente coloca cuidadosamente o pesado capacete, movendo-o de forma a ajustá-lo em sua cabeça.
Quando termina de fixar a máscara, ela escuta um estranho barulho, semelhante a um motor elétrico, são as bombas de filtragem iniciando o processo de purificação do ar. Inicialmente Marcela não consegue enxergar nada além da escuridão, como se estivesse com os olhos fechados, então uma série de números e letras começam a piscar na parte interna da viseira, revelando uma tela digital de modelo muito antigo e inicializando um sistema de vídeo. Uma imagem em preto e branco começa a se formar, rapidamente ficando nítida e exibindo toda a desolação do lugar. A nuvem de gases aparece bem na frente dela, como se fosse um grande monstro negro pronto para devorá-la.
Marcela treme por alguns segundos, mas então se força a recuperar o controle, focando nas informações que são exibidas na tela da viseira: os batimentos cardíacos dela e os dos outros dois, a distância em que está deles e o estado geral do equipamento. Ela repara que a sua pulsação e a de Jorge estão muito maiores do que a de Malthus, o que de certa forma lhe traz um pouco mais de tranquilidade, afinal o homem está calmo, deveria realmente saber o que estava fazendo.
A obsoleta tela digital a faz se lembrar do CND, dos displays virtuais projetadas na retina. Ela havia usado CND’s desde seus três anos de idade e agora nunca mais poderia usar um novamente, a sensação de estar offline, desplugada, era muito estranha, como se uma parte de seu corpo tivesse sido removida. Jorge, por outro lado, parecia se adaptar melhor. Então a voz dele ecou no rádio do equipamento:
- Marcela, cadê você? Anda logo, não temos o dia todo!
Ela respira fundo e com precaução avança em direção a nuvem, entrando lentamente. Logo se apavora, pois de imediato não consegue enxergar nada, então, no visor da máscara, o visor eletrônico começa a se adaptar ao ambiente, ajustando automaticamente o brilho e a nitidez, em segundos ela pode enxergar claramente o interior da nuvem, como se os vapores tóxicos não existissem mais.
O cenário não difere tanto do que eles haviam visto até agora: várias casas rudimentares, barracos e pequenos depósitos e pilhas de sucata se espalhando por um terreno plano, porém sem nenhuma rua ou ruela entre eles. Todas as construções possuem as paredes cobertas de sujeira e graxa, que as faz parecer ainda mais tristes e desoladas no vídeo em preto e branco do visor da máscara. A distância entre as construções é grande, com pequenos descampados separando conjuntos de casas germinadas. Mini-conteiners estão espalhados pelo chão sobre grandes poças de piche que fazem o lugar parecer um pântano. Marcela percebe que Jorge e o samurai são marcados eletronicamente: as imagens deles aparecem em um branco brilhante, e também ficam visíveis mesmo através de obstáculos. “Isso é legal”, ela pensa tentando se animar.
A jovem engenheira aperta o passo, andando mais rápido para alcançar os companheiros. Após alguns metros, começa a reparar melhor na paisagem, então percebe algo perturbador: o lugar está repleto de cadáveres enegrecidos. Espalhados por todos os lados, corpos de homens, mulheres e até crianças jazem nas poças de piche; outros estão nas portas das casas, e alguns caídos bem embaixo das janelas. Ao lado dos corpos, malas e mochilas mostram que as pessoas estavam tentando fugir às pressas. Marcela nunca havia presenciado em toda a sua vida uma cena tão pesada, tão agourenta. Ficou chocada, e para onde quer que olhasse, as faces contorcidas dos cadáveres pareciam estar gritando por socorro.
Logo entende o que aconteceu: a nuvem deveria estar se expandindo, os vapores brotando do chão sem nenhum aviso, e aquelas pessoas, em sua maioria expurgados, não tinham para onde ir, arriscando-se a viver perto dos gases tóxicos. Ela começa a se sentir mal, náuseas e ânsia de vômito sobem pela garganta. Então para de correr e se apoia em uma parede encardida de um barraco próximo. Tenta controlar a respiração mas seu coração acelera. Então ela se senta, acostando-se à parede imunda.
Ao seu lado percebe o corpo de um homem que morrera com uma expressão horrível. Ela vê de soslaio o rosto do cadáver, que parece ter sido carbonizado, transformando-se em uma espécie de estátua, um demônio que vai assombrá-la pelo resto de sua vida, então, aterrorizada, ela rapidamente olha para o outro lado. Sente calafrios por todo o corpo. Se lembra do contrato, onde a empreiteira iria utilizar material de segunda mão para realizar as manutenções no sistema de abastecimento da cidade, tubulações gigantescas que passam ali por baixo, e que agora estavam liberando toxinas terríveis. Por culpa dela e de Jorge o material utilizado nos reparos não aguentou, inocentes morreram e eles faturaram milhões. Marcela começa a chorar copiosamente, o visor da máscara fica embaçado ao mesmo tempo em que uma dor lacerante cresce em seu peito. Aos prantos, ela grita pelo namorado que não tarda em responder:
- Marcela! O quê está acontecendo? Você está...você está chorando?
- Jorge...Me tira daqui! Esse lugar...tanta gente morta - ela faz uma longa pausa e ele escuta sua respiração ofegante - e tudo isso por nossa culpa!
A voz do samurai entra no circuito, seco, ele se mostra insensível.
- Moça, não é hora de arrependimentos! Você deveria ter pensando nas consequências antes de agir. Cara, volta lá e pega sua mulher. Já perdemos tempo demais!
Jorge fica muito preocupado. Ele havia conhecido Marcela há alguns anos, em um trabalho de consultoria para a VNR. Os dois se apaixonaram e logo ela tomou conhecimento dos planos dele, que consistiam em roubar sistematicamente seus chefes e então fugir para a Europa. No começo ela relutou, mas com o tempo cedeu e o ajudou em dezenas de esquemas fraudulentos. Ao longo de dez anos os dois conseguiram levantar dinheiro suficiente para comprar um pequeno país, mas não foi tão fácil como Jorge imaginava, e por duas vezes eles quase foram apanhados. Para garantir a segurança do fruto de tanto “trabalho”, ele havia transferido toda a fortuna para um banco da Siracusa, localizado em um paraíso fiscal oculto. O sistema do banco criou uma senha gráfica de vinte símbolos, gravando dez deles no subconsciente de Jorge e a outra metade no subconsciente de Marcela, de forma que apenas os dois juntos poderiam por as mãos na bolada. Ele fez isso em parte para provar que a amava, mas também porque precisava muito dela para ter acesso aos contratos bilionários da VNR. Jorge jamais poderia permitir que ela fosse capturada, pois além de ser sua cúmplice, era também a única pessoa que ele realmente amava.
O executivo dá meia volta e começa a correr usando a marcação eletrônica do visor do seu capacete para localizar Marcela. Rapidamente chega até ela e então se agacha, abraçando-a por um momento; então ele tenta colocá-la de pé, mas ela resiste e o abraça de volta com mais força, tentando se aproximar dele o máximo possível, mas é impedida pela pesada máscara de gás.
- Jorge, a gente não deveria ter feito aquilo, já não precisávamos de tanto dinheiro! Essas pessoas pagaram pela nossa ganância - Ela olha ao redor, mostrando para o namorado as dezenas de corpos.
Preocupado mais em sair dali do que com suas ações passadas, ele tenta confortá-la:
- Marcela, não tinha como saber! Poderia ter sido em qualquer uma das Zonas de Exclusão, mas aquelas animais escolheram justamente essa. E os… - ele dá uma boa olhada ao redor, então respira fundo e continua - os moradores daqui são todos expurgados, eles sabiam do risco!
Ele percebe uma sombra se aproximando, olha rapidamente para trás e vê Malthus, que com um tom irritado grita pelo rádio da máscara:
- Mas que diabos vocês estão fazendo?
Nesse exato momento um alerta em vermelho começa a piscar nos visores eletrônicos das máscaras dos três. Jorge se levanta bruscamente. Assustado, ele olha para o samurai:
- O que está acontecendo agora?
- O que você acha? Fomos descobertos!
O samurai se agacha, pegando sua mochila e retirando dela um computador portátil, praticamente uma relíquia, algo que o casal só viu antes em filmes antigo.
Em seguida, ele também tira da mochila uma pequena antena e a conecta ao computador. Jorge olha várias vezes para Malthus, tentando entender o que o homem está fazendo, mas então ele percebe que Marcela começa a se recuperar. Ela ainda respira ofegante, tenta se levantar e ele a ajuda, virando-se totalmente para a mulher e abraçando-a.
- Eu jamais poderia imaginar que isso aconteceria. - Diz ela com a voz fraquejando - mas o que ele está fazendo?
- Marcela, querida, eles nos encontraram.
Jorge engole em seco, ele repara através do display os batimentos dos dois voltando a subir.
O samurai liga o computador e a pequena antena começa a girar sua parábola em 360 graus. Na tela do aparelho surge um tipo de mapa em forma de círculo, onde o centro é a posição atual em que a antena está, e também onde eles estão. Logo vários pontos vermelhos começam a aparecer ao redor do centro. Jorge olha para todos os lados, esperando encontrar mercenários armados, mas não consegue ver nada. Ainda abraçando Marcela ele olha amedrontado para o guerreiro:
- Malthus! Estamos cercados? Eu não consigo ver onde eles estão!
- Olhe para lá! - O samurai se levanta e aponta para o céu, ao mesmo tempo em que pega o seu fuzil.
Jorge vê objetos do tamanho de bolas de tênis, pequenas esferas, que flutuam no ar ao redor deles. Elas se movem de forma sincronizada, mas algumas fazem manobras complexas, parando no ar e então projetando-se rapidamente para outra posição, como um beija-flor. Jorge ainda percebe algo semelhante a um olho prateado em cada objeto, que as vezes emite uma espécie de flash. Então ele percebe: são drones de filmagem, dezenas deles.
O executivo fica pálido. Marcela também começa a perceber os drones, assuntando-se.
- É… É a Hora do Caçador, não é? - pergunta ele, tremendo - Os miseráveis colocaram nossas cabeças a prêmio...
Sério, Malthus parece não ouvir a pergunta, apenas fita o céu e prepara sua arma. Então o guerreiro puxa um cabo ótico que sai do fuzil e o liga na máscara, assim, as imagens da mira passam a ser transmitidas em tempo real para o visor eletrônico do capacete. Finalmente ele fala:
- Escutem os dois: entrem no barraco e fiquem lá até eu dar a ordem para vocês fugirem. Na parte de trás de suas máscaras existe um pequeno compartimento, dentro dele vão encontrar um mapa em papel que os levará a um túnel. Vocês precisam chegar a esse túnel custe o que custar.
Ainda um pouco ofegante, Marcela olha para Malthus e tenta argumentar com ele:
- Mas é suicídio enfrentar os caçadores de recompensa sozinho!
- É para isso que vocês me contrataram! Agora entrem logo lá! É a vida de vocês que está em jogo.
Malthus retira da cintura uma pistola de aparência poderosa, especialmente modificada por ele.
- Pegue isso, Jorge. Se as coisas ficarem feias não hesite em usá-la. Veja aqui - aponta para um botão circular do lado direito da pistola - isso é o seletor de tiro, regule-o para máximo dano.
Tremendamente sério, o executivo observa a arma e a pega rapidamente.
- Obrigado, Malthus.
O samurai dá as costas para o casal e segue em direção a um descampado próximo ao barraco, onde ele se posiciona atrás de um pequeno contêiner, aguardando seu inimigo.
Jorge e Marcela dão uma última olhada em Malthus, então se dão as mãos e entram rapidamente dentro do barraco, escondendo-se atrás de uma mesa de madeira que ele derruba para criar uma proteção rudimentar. Marcela olha para o namorado, ainda com lágrimas nos olhos ela diz:
- Me desculpa, eu...eu não queria que as coisas chegassem a esse ponto…
Jorge a abraça, mas o tom de sua resposta não consegue transmitir a segurança que ele esperava:
- Tá tudo bem, querida. Vai dar tudo certo.
***
As câmeras nos drones transmitem as imagens para milhões de pessoas ao redor do mundo, que através de um biosoftware pirata, assistem confortavelmente ao programa “A Hora do Caçador”, um reality show ilegal que mostra em tempo real uma disputa entre caçadores de recompensa. O participante que fizer o maior número de pontos na temporada recebe o incrível prêmio de 5 milhões de Bitcoins. A regra é, quanto mais espetacular e emocionante for uma captura, mais pontos o protagonista faz. E em algumas vezes os episódios terminavam com mortes brutais, principalmente quando o contrato especificava “vivo ou morto”.
Assim que o programa entra no ar, as fotos das pessoas procuradas, chamadas de presas, são exibidas para os espectadores e enviadas aos caçadores. Jorge e Marcela são as presas da vez, e uma das maiores recompensas da temporada está sendo oferecida pelo casal, vivos ou mortos, mas se forem capturados vivos há um generoso bônus.
Além da recompensa existem as apostas, onde milhares de pessoas arriscam pequenas fortunas em seus caçadores preferidos e, taxando essas apostas, a organização que criou o show ganha muito dinheiro. O caçador vencedor do episódio ainda leva um percentual das apostas daquela edição. Na verdade, a ideia da concepção do show tinha sido uma das mais bem sucedidas da década, criando milionários da noite para o dia.
Cada cidade-estado, país, corporação ou mesmo indivíduos endinheirados, divulgam uma lista de fugitivos procurados, onde colocam um preço pelo fora-da-lei, seja ele um criminoso ou alguém que se deu mal em um negócio com as pessoas erradas. Os fugitivos muitas vezes arrancavam seus CND’s, tornando-se irrastreáveis, e para capturá-los surgiram os primeiros caçadores de recompensa. No início era uma atividade pouco conhecida, mas assim que surgiu o show, os caçadores se transformaram em celebridades, e os governos acabaram fazendo vista grossa, apesar de muitas pessoas protestarem contra a violência sem limites apresentada.
Uma contagem regressiva é exibida em cima das imagens geradas a partir da Zona de Exclusão IV, os expectadores ao redor do mundo começam a ficar ansiosos e, então, a imagem muda para um cenário dentro de um estúdio clandestino, onde uma bela apresentadora cumprimenta a audiência.
Um placar é exibido, listando o ranking dos doze melhores competidores até o momento. Porém, para o show de hoje, apenas os dois primeiros poderão participar. Uma música agitada começa a tocar e imagens das caçadas anteriores preenchem as telas virtuais. Em suas casa as pessoas vibram, torcendo para que seus caçadores preferidos sejam logo exibidos.
Então uma voz masculina entra em cena, anunciando os dois primeiros colocados que disputarão a caçada da noite: “Em primeiro lugar, Yuri Webber, O Coveiro, líder da temporada com 455 pontos; em segundo, Dianna Di Médice, A Fúria, com 414 pontos.” A diferença entre os dois caçadores é extrema, enquanto Yuri aprecia a violência e a brutalidade, Dianna é a personificação da furtividade. Especialista na arte da camuflagem, a caçadora segue um rígido código de conduta.
Embora fossem mundialmente conhecidos, seus verdadeiros rostos e identidades jamais eram revelados. Eles usam avançadas armaduras biomecânicas, especialmente criadas para impressionar a audiência.
O volume da música aumenta, e várias imagens dos dois caçadores em ação tomam a tela. Cenas de capturas espetaculares fazem as pessoas delirarem em suas casas. Intercaladas com a ação frenética, as estatísticas de cada protagonista são exibidas e comparadas.
Os expectadores ficam maravilhados e as apostas atingem picos históricos, se dividindo entre “O Coveiro” e “A Fúria”, pois se Dianna conseguir capturar as presas assumirá a liderança do ranking.
Então a imagem corta para a transmissão ao vivo da Zona de Exclusão IV, onde dentro da nuvem de vapores tóxicos todos os drones focam em Malthus, dando closes em sua estranha máscara e em sua arma. Mensagens são exibidas nas telas virtuais, indagando os expectadores: Quem será esse homem? Será ele um oponente a altura para nossos formidáveis caçadores?
A audiência do programa atinge níveis estratosféricos.
***
Um grande flymob de aparência imponente entra rasante dentro da Zona de Exclusão. Em seu interior, Yuri Webber, conhecido como “O Coveiro”, aprecia um copo de whisky sentado confortavelmente um uma cara poltrona reclinável. Em suas retinas várias telas virtuais exibem imagens de homens e mulheres muito bem vestidos, de diferentes etnias e nacionalidades. São seus apostadores e os representantes dos contratantes. No centro da tela uma cifra milionária aumenta a cada segundo, ao lado dela uma sequência de fotos de Jorge e Marcela é exibida em loop, juntamente com várias informações sobre o casal.
O valor é muito alto, talvez o maior a que ele e seu sócio concorreram em todas as temporadas do programa, mas o caçador não liga muito para o dinheiro. É claro, era o fluxo de capital que comprava as armaduras, mantinha o flymob voando, pagava a equipe de técnicos ultra especializados e ainda preservava sua verdadeira identidade, mas o que realmente o motivava era a liberdade de poder concretizar aquilo que ele sabia fazer melhor: matar a sangue frio.
E mais inebriante do que isso era ser reconhecido e adorado por milhões de pessoas. Em sua mente, o Coveiro se via como um astro, um popstar da arte sombria e maldita que é o assassinato.
Ele olha concentrado para as fotos de Jorge e Marcela, imaginando como iria capturá-los e torturá-los antes do golpe final. De fato, em todas as edições do programa e mesmo antes de ser um caçador famoso, Yuri sempre entregava suas presas mortas, por vezes em pedaços. Quando o contratante requisitava que o fugitivo só tinha valor vivo e inteiro ele não pegava o contrato, pouco importando o valor do prêmio, e isso deixava Cassius, seu sócio e empresário, completamente maluco. Com o tempo esse detalhe peculiar se espalhou pelo meio e logo inventaram o apelido de Coveiro”, o que no fim das contas só aumentou sua fama e inflou seu ego.
Os pensamos sombrios de Yuri são abruptamente interrompidos por uma voz animada que invade os nano transmissores de áudio do CND:
- É isso aí, parceiro! Pegue os franguinhos que sessenta por cento dessa bolada toda vai direto para a sua conta! Mas tem um detalhe...
Em seguida, uma janela aparece exibindo o dono da voz: um homem loiro vestido em roupas elegantes. É Cassius, o agente e sócio de Yuri, o cara que cuida da parte burocrática do trabalho. O Coveiro faz um careta ao vê-lo e toma mais um gole da bebida, tentando relaxar, então responde ao colega:
- Grande Cassius, o que manda, sócio? E que detalhe é esse?
- Seguinte, os dois tem alguma coisa na cabeça, um lance importante que não faço ideia do que seja. Daí a gente vai ter que preservar os cérebros e entregá-los intactos, sacou? Repetindo: Não detona a cabeça dos frangos!
Yuri não gosta do que ouve, ele faz uma careta e bebe mais um gole do whisky. Do outro lado da tela virtual, Cassius passa as mãos nos cabelos loiros e compridos, um gesto que sempre faz quando está ansioso.
- Porra, tu entendeu a parada? Não podemos perder essa de jeito nenhum! A Máfia de Taiwan tá minha cola, cara, e eles apostaram uma grana preta que você vence hoje…
- Relaxa, sócio. Deixa comigo.
Yuri se desconecta, não dando tempo para o empresário dizer mais nada. Ele se levanta da cadeira no mesmo momento em que um técnico vestindo um macacão laranja entra na pequena sala, localizada na parte de trás do flymob.
- Senhor, está na hora. Recebemos a localização das presas e estamos prontos para colocá-lo em sua armadura.
O Coveiro pensa um pouco. Termina sua bebida saboreando lentamente o gosto amargo e forte do último gole, então se levanta e aproxima-se do técnico.
- Excelente, Henry. E a câmara de criopreservação?
É comum os caçadores usarem a criogenia para preservarem partes do corpo de suas vítimas, retiradas antes da entrega das mesmas aos contratantes e quando o acordo não especificava que elas deveriam estar inteiras. Nesses casos, os órgãos amputados eram vendidos por uma boa grana nos mercados negros.
- Ativada e funcionando nos parâmetros normais.
- Muito bom!
- E qual armadura o senhor vai usar hoje?
Yuri olha através de uma pequena janela para a desolação do lugar, então anda em direção a porta que leva ao próximo cômodo da nave, finalmente fala:
- Prepare a Nosferatu.
***
Malthus está bem protegido atrás do pequeno contêiner. Os drones-câmeras voam caoticamente ao redor dele, como um enxame de vespas pronto para atacar uma presa indefesa. Ele ativa o zoom eletrônico da arma e o regula para o máximo, assim consegue ver através de cada obstáculo em um raio de centenas de metros, como se estivesse em um grande terreno plano, dessa forma ele espera se adiantar ao seu oponente, ou oponentes.
“Caçadores-de-recompensa, como eu odeio essa raça”, pensa. Então uma imagem distante é captada pela tecnologia antiquada do seu equipamento: um estranho vulto, com mais de dois metros de altura, se aproxima do lugar. A imagem vai tomando forma, revelando ser o inimigo esperado. Alguns drones vão de encontro ao caçador e começam a filmá-lo, nesse exato instante, Yuri acelera os passos iniciando uma corrida até suas presas.
Malthus mira bem no inimigo, que a cada segundo se aproxima mais de sua posição. Muda a munição do fuzil para projeteis explosivos, adequados para uso contra alvos de metal.
O Coveiro avança com sua assustadora armadura como se fosse um tanque de guerra descontrolado em uma zona urbana, derrubando e destruindo tudo que encontra pela frente, provendo um verdadeiro espetáculo para os milhões de expectadores conectados ao programa.
Dentro da Nosferatu, ele tem a exata localização das presas e sabe que deverá derrotar um samurai urbano para chegar até elas. Isso só o deixa mais feliz, pois poderá fazer o que bem entender com o guerreiro das ruas.
Imagens de vários ângulos diferentes da terrível armadura são transmitidas em tempo real, deixando a audiência extasiada. A Nosferatu é na verdade uma antiga armadura de guerra do exército da União, que fora totalmente remodelada e adaptada para os dias atuais. Havia recebido uma nova couraça, melhor software e um exosqueleto japonês, que provia a força de cinquenta homens. Externamente recebeu uma pintura em vermelho, adornada com várias marcas tribais em branco. Crânios humanos cromados foram colocados ao longo das placas peitorais e nas juntas, criando um visual grotesco e assustador. O próprio capacete era um crânio estilizado, onde duas luzes vermelhas fantasmagóricas eram projetadas a partir dos olhos. No braço esquerdo existe uma metralhadora .50 acoplada, no braço direito, uma lâmina de flexmetal e um pequeno lançador de granadas. A mera visão daquela coisa já era por si só perturbadora, a máquina havia sido minuciosamente reformulada para causar pânico em suas vítimas.
Mais alguns barracos são derrubados, e logo o popstar assassino tem uma visão clara de Malthus, agachado atrás de sua proteção antiquada. O caçador ri, pois o samurai nem ao menos usa uma armadura. “Vou estripar esse desgraçado”, pensa Yuri.
O Coveiro ativa um scanner, examinando por completo o corpo de Malthus, a única coisa que encontra são implantes cibernéticos rudimentares, tecnologia ultrapassada. Realmente, não poderia esperar por nada tão fácil.
O samurai se levanta, ficando totalmente exposto ao inimigo. Em um movimento muito rápido, aponta o fuzil para o Coveiro e puxa o gatilho. Um projetil explosivo é disparado em velocidade supersônica. Dentro do barraco próximo, Jorge e Marcela se assustam ao ouvirem o forte estrondo da explosão da cápsula.
O tiro certeiro atinge a cabeça da armadura Nosferatu, produzindo uma explosão e causando uma pane momentânea nos sistemas digitais da máquina de matar. Yuri fica desorientado, as imagens dentro do capacete se embaralham, dezenas de códigos de erro são exibidos sem parar. Os expectadores do programa também estouram em clamores e brados de pura emoção, imaginando se o Coveiro havia sido finalmente derrotado.
Malthus sai de sua proteção. Ele deixa para trás o sobretudo térmico revelando que usa um leve colete de kevlar; em suas costas, o cabo de uma Katana pode ser visto dentro de uma bainha. O samurai recalibra seus implantes bio-mecânicos nas pernas, atingindo o desempenho máximo dos mesmos, então se lança em uma corrida em direção ao inimigo.
Ainda desnorteado, Yuri percebe que se tornou um alvo fácil, então ele tenta ativar a .50 com um pensamento. Por sorte a rede bio-digital da armadura ainda está funcionando, e a metralhadora começa a cuspir fogo em todas as direções.
Malthus se aproxima do inimigo e ao perceber o leque de fogo formado pelos disparos desorientados da metralhadora, usa toda sua força para executar um salto, ele consegue, mas é atingindo na perna esquerda. O tiro atravessa a carne abrindo um grande buraco que deixa exposto o implante cibernérico que substitui o fêmur. Ele grita de dor, mas em pleno o ar dispara novamente contra o Coveiro, esvaziando o pente do fuzil e acertando vários tiros no peito da armadura. O impacto das explosões derruba Yuri, que cai em uma poça de piche com a couraça frontal expelindo uma fumaça negra.
Em um movimento extremamente rápido, Malthus larga o fuzil e saca sua Katana, segurando-a com as duas mãos acima da cabeça, posicionado a lâmina inteiramente para baixo, como se fosse um grande ferrão mortífero. Ele então cai bem em cima da Nosferatu avariada, fincando a espada contra o metal do peito da armadura.
- Fujam agora! - A ordem chega aos alto-falantes das máscaras de Jorge e Marcela, que prontamente saem correndo de dentro do barraco, com os mapas em suas mãos.
-Desgraçado! - Grita Yuri, enfurecido.
A Katana atravessa os cinco centímetros da blindagem, atingindo o corpo do caçador, protegido apenas por uma fina malha sintética. O samurai força mais ainda a lâmina, vislumbrando uma inacreditável vitória, mas as engrenagens do braço esquerdo da armadura do inimigo entram em ação, produzindo um violento soco que atinge em cheio a cabeça de Malthus, amaçando sua máscara de gás e fazendo-o voar por alguns metros.
O soco é tão forte que o samurai chega a perder a consciência por alguns instantes. Rapidamente Yuri se levanta e corre em direção ao corpo de Malthus, então projeta um violento chute contra as costelas do homem, lançando-o contra a parede do barraco onde Jorge e Marcela estavam.
Então o Coveiro pega Malthus pelo pescoço, levantando-o e fazendo-o girar no ar, para em seguida jogá-lo de costas contra o chão. O impacto destrói a coluna vertebral do samurai. A eficiência da máscara de gás cai para menos de 10%, indicando colapso eminente.
- Agora vamos ver quem é você, seu merda.
O algoz vestido em metal segura forte com as duas as mãos a máscara e começa a removê-la. Malthus é acometido por uma dor terrível, insana, pois vários de seus órgãos foram danificados com a pancada. Mas não, ele não morreria sem lutar, não daria para o inimigo o prazer de matá-lo. Em um último gesto, o guerreiro das ruas retira um pequeno objeto em forma de disco de um de seus bolsos e rapidamente o prende contra a armadura de Yuri.
Segundos depois, o coveiro remove por completo a máscara de gás, revelando o rosto cheio de cicatrizes e os olhos verdes e cansados de Malhus. Os drones-cameras estão todos em volta dos dois, não deixando escapar nenhum segundo da ação.
É o fim do samurai urbano; gases tóxicos entram queimando em sua garganta enquanto seu corpo é acometido por uma dor terrível. A última coisa que ele vê é Yuri tentando remover o objeto grudado em sua armadura. Então uma forte explosão brota do pequeno aparelho circular, produzindo uma nuvem de fogo que vaporiza o corpo de Malthus e destrói a maioria das camêras-drone. Aquilo era uma granada térmica, e Yuri descobre dá pior maneira possível.
O corpo do caçador ferve, as chamas projetam-se por toda a Nosferatu, destruindo parte da camada de proteção exterior e danificando vários sistemas.
Os drones restantes se afastam e então focalizam o desespero do homem em chamas, que rola no chão tentando apagar o fogo. Em suas confortáveis residências, os expectadores estão boquiabertos, impressionados com o terrível destino de um dos mais famosos protagonistas do programa.
Então o imenso flymob do time do Coveiro entra no pequeno descampado. Uma rampa se abre em baixo do veículo, dois técnicos vestidos em trajes protetores saltam da nave e correm em direção ao caçador. Munidos de tanques de gás carbônico, fixados nas costas, os técnicos usam pequenas mangueiras para expelir o composto sobre o corpo do Coveiro, extinguindo as chamas e revelando o terrível estrago causado na Nosferatu, que apesar de chamuscada, ainda funciona. Yuri então se levanta, comprovando o que os técnicos já sabiam: a armadura havia resistido ao calor, os danos não comprometeram totalmente a máquina, exatamente como os projetistas haviam garantido.
***
Jorge e Marcela apenas ouvem os disparos e a explosão da granada térmica, eles agora correm em direção a uma grande estrutura que parece ser algum tipo de moinho, e que segundo o mapa, é onde está a entrada para o túnel que os tirará dali, levando-os para a segurança.
Eles param para recuperar o fôlego, a apenas dez metros da entrada do moinho. Os dois estão exaustos, e percebem que agora estão sozinhos, pois os sinais vitais de Malthus desapareceram do display interno das máscaras. Então alguns drones começam a aparecer, muitos se posicionam entre o casal e a entrada do prédio.
- Droga! Essas pestes de novo!
- Jorge, Malthus está morto! Temos que entrar lá de qualquer maneira, seja lá quem for o caçador de recompensas ele logo vai nos encontrar.
- Sim, eu sei disso tudo, Marcela, mas quero acabar com esses drones miseráveis!
O executivo, tomado pela raiva, saca a pistola que lhe foi dada por Malthus e então dispara contra os pequenos robôs, atingindo vários deles que caem inertes no terreno imundo. Os outros se afastam, voando em manobras evasivas e circulando o casal.
Os dois avançam, Jorge vai à frente empunhando a pistola. Eles estão quase chegando na entrada do prédio e uma faísca de esperança se acende em seus corações, a fuga era possível. Então, inesperadamente, Jorge sente um forte chute contra seu abdômen, como se tivesse sido atingindo por alguma coisa invisível. Ele cai e rola no chão, deixando a pistola escapar. A dor é terrível, e o executivo cospe um punhado de sangue, atônito.
Sem entender o que acontecera, Marcela para de correr e olha assustada para todos os lados. O executivo então se projeta para o lugar onde a pistola estava, pegando a arma e a apontado em várias direções. Então ele é atingindo novamente, dessa vez por um forte soco no rosto, um cruzado de direita, que arranca mais sangue de sua boa, porém, num ato de reflexo puxa o gatilho da arma, disparando um projétil que ricocheteia em alguma coisa.
Instintivamente, Jorge se esgueira para trás, usando suas pernas e braços para se afastar ao máximo do misterioso atacante. Uma imagem espectral começa a se formar. Raios amarelos aparecem do nada em pleno ar poluído, revelando uma forma feminina, que logo se materializa em uma incrível armadura branca, ornada com detalhes em dourado e com um visual impressionante, que lembra em vários aspectos um centurião dos tempos de Roma.
O capacete da armadura é exatamente um elmo romano, com sua crista vermelha exuberante, porém, o rosto é todo protegido por uma máscara que lembra uma escultura facial de um belo rosto de mulher, em um tipo de metal semelhante ao bronze. No dorso da caçadora, um rifle de plasma se faz notar, fixado à couraça através de ímãs eletrônicos.
Jorge reconhece a armadura, é a Gladium VI. Ele não tem mais dúvidas: está diante de Dianna Di Médice, A Fúria. Só tem tempo de gritar para Marcela fugir dali o mais rápido possível.
Como uma leoa em um dia de caça, a Fúria se aproxima do homem decidida a capturá-lo, por sua vez, ele dá vários tiros contra ela, descarregando o pente, mas todos os disparos são inúteis contra a poderosa armadura. Dianna aponta seu braço esquerdo, revelando um lançador de projeteis. Então ela dispara contra Jorge, acertando em cheio um dardo tranquilizante no peito do executivo. Em questão de segundos, ele entra em um estado letárgico, perdendo a consciência rapidamente. Ainda consegue olhar para Marcela, que está agora correndo o máximo que pode na direção contrária.
Do outro lado das câmeras dos drones, a audiência entre em frenesi, principalmente aqueles que apostaram na caçadora italiana. A aparição da Fúria foi surpreendente, épica.
Marcela sabe que não tem muitas chances, o jeito é correr o máximo possível e procurar algum lugar para se esconder. Olhando de relance para trás, percebe um flymob se aproximando do corpo de Jorge, provavelmente é a equipe da Fúria. Então ela vê a caçadora vindo em seu encalço.
Desesperada, a engenheira tenta alcançar uma residência próxima, que ela se lembrava de estar repleta de antigos móveis. Com alguma sorte, poderia utilizá-los para bloquear a porta da sala, possibilitando algum tempo para escapulir pela cozinha e tentar despistar sua perseguidora.
Então, em um forte estrondo, toda a parede da frente da casa desaba, revelando uma imensa armadura vermelha, muito chamuscada e cheia de marcas de tiro. Marcela percebe naquele momento que está tudo acabado.
O Coveiro avança em sua direção, disparando contra ela uma estranha arma, uma rede elétrica. Extremamente cansada, a jovem não esboça a menor reação, sendo facilmente capturada pelo assassino de Malthus.
Vendo a cena, Dianna interrompe sua corrida e saca seu rifle de plasma, apontando-o para o Coveiro.
- Me entregue a mulher, Yuri, ou vou terminar o serviço do samurai urbano, mandando você direto para o inferno, que aliás, é o lugar de onde você nunca deveria ter saído.
A voz da Fúria soa sintetizada, mas mesmo assim a ameaça se fez sentir, e o Coveiro sabe que a arma de plasma poderia ser fatal dado o lastimável estado de sua armadura. Pensou rápido, enviando uma mensagem para sua equipe que aguardava ali perto, dentro do flymob. Encarou sua oponente, provocando-a em um tom bravio:
- Você a quer, Fúria Então coloca essa sua armadura de merda para funcionar e venha pegá-la!
Yuri se aproxima do corpo aprisionado de Marcela, e com um rápido movimento, pega a jovem e a coloca em suas costas. Em seguida, ele direciona a .50 para sua inimiga e dispara a arma, produzindo uma mortífera rajada de balas.
Dianna não pode atirar, pois se o fizer atingirá também Marcela, que terá grandes chances de morrer. O Coveiro sabia disso, era o tal “código-de-honra”, uma tremenda besteira para ele, mas que agora veio bem a calhar pois salvaria sua pele.
A Fúria corre, escapando formidavelmente da rajada de tiros. Sua armadura não é muito forte, na verdade poderia ser facilmente destruída pela Nosferatu em um combate corpo-a-corpo, mas a velocidade e a agilidade contrabalançavam essa falha, fazendo de Dianna em sua Gladium VI uma arma letal.
Agora ela teria que derrubar o Coveiro. Então se lança ao chão, protegendo-se dos tiros junto a um pequeno monte de sucata. Pega uma granada de choque, das seis que Gladium possui, em seguida, lança a bomba com extrema precisão contra a posição de Yuri, esperando que a onda de choque o desoriente.
O caçador vê a granada em pleno ar e a acerta com um tiro preciso, o artefato explode, produzindo uma violenta onda de choque que consegue derrubar a Nosferatu juntamente com sua presa. Marcela cai ao lado de seu algoz, desacordada. Yuri tenta se levantar, apoiando-se em uma perna.
Dianna sai da proteção, chegou a hora do contra-ataque. A Gladium move-se velozmente na direção de Yuri, pronta para nocauteá-lo com um chute certeiro em sua cabeça e assim concluir a caçada, porém, ela para de correr abruptamente ao ver uma imensa nave surgindo em meio aos gases tóxicos. O flymob se posiciona sobre o Coveiro, e então sua rampa inferior se abre, revelando um grupo de técnicos que descem rapidamente para socorrer seu chefe.
- Mas que filho da mãe!
A Fúria saca seu rifle de plasma e o aponta para o veículo, que responde exibindo dois potentes canhões que saem de compartimentos secretos na fuselagem da nave. Eles miram em Dianna, e logo uma chama azul começa a ser produzida no interior das armas.
Aquilo era um golpe baixo, não havia realmente nenhuma honra na conduta do Coveiro. A Fúria sabe que não tem nenhuma chance, então ela mentaliza a palavra “máxima eficiência”, para em seguida acelerar todos os motores de sua armadura e correr em direção ao grande moinho, onde poderia encontrar o túnel almejado por Jorge e Marcela e que agora era sua salvação. Seu flymob já estava longe, e ela não poderia correr o risco dele ser atacado pela nave do Coveiro, muito mais poderosa.
Os canhões abrem fogo, transformando o lugar em um pequeno inferno. Explosões levantam grandes quantidades de terra e lama, perseguindo Dianna como se ela fosse a presa da vez. Um dos tiros quase a atinge, fazendo-a voar por vários metros. Ao longe, o Coveiro ri do destino de sua colega de profissão, sendo amparado por seus técnicos que o levam para dentro da nave debaixo da salva de tiros incessantes.
A caçadora consegue executar uma cambalhota no ar e cai bem na entrada do Moinho. Ela se lança para dentro do prédio, correndo por uma grande sala em direção ao que parece ser a entrada do subsolo. Mas os cruéis canhões não dão trégua, e atiram com tudo contra a estrutura, explodindo o prédio e o derrubando por completo.
Milhões de expectadores ao redor mundo ficam paralisados, pasmos com o que acabaram de assistir. Definitivamente, aquele momento foi o maior clímax de todas as temporadas do show.
Dentro de seu flymob, Yuri e seus técnicos comemoram a possível morte da Fúria. Então a nave inicia os procedimentos para sair da nuvem de gases. Os canhões são recolhidos e ela começa a voar em trajetória ascendente. Marcela é retirada da rede elétrica, sendo levada ainda desacordada para uma cela quase medieval, onde é acorrentada à parede.
Na oficina da nave, o Coveiro senta-se em uma grande cadeira, onde a equipe de técnicos o cerca e começa a desmontar a armadura, removendo peça por peça. Ele tira o capacete, que esta terrivelmente avariado. Coça os olhos e olha para Henry, que tem uma caixa de charutos nas mãos. Yuri pega um deles e o ascende, tentando relaxar. As coisas não saíram como o planejado, mas pelo menos sua inimiga deveria ter morrido. Agora, ele precisa recuperar a outra presa, o executivo Jorge, que poderia estar em qualquer lugar. Então um dos técnicos chama sua atenção:
- Chefe, veja! - o homem aponta para um monitor - ela está viva!
- Mas isso é impossível! - esbraveja Yuri.
O técnico aponta para uma tela, onde a imagem de Dianna saindo dos escombros e mostrada em vários ângulos.
O Coveiro é tomado por uma raiva irracional, ele olha para o técnico chefe, e após dar uma forte tragada no charuto dirige a palavra ao homem:
- Henry, para onde o flymob da Fúria foi ?
- Nós conseguimos rastrear o veículo por dez quilômetros, senhor, então ele saiu do alcance. Por sua última posição, presumimos que tenha se dirigido para Vix.
- Porra! Então vocês o perderam?
- Ele é rápido, senhor, muito rápido.
O caçador quase se levanta da cadeira, pronto para esganar Henry, mas a batalha havia sido dura, e seu corpo doía. Precisa se controlar, relaxar e esvaziar a mente. Mesmo se conseguisse capturar a Fúria, ela jamais revelaria a localização da outra presa.
Então muitas telas virtuais se ativam e pipocam em suas retinas, indicando que a conexão com a armadura havia terminado, liberando o sistema do CND. Dezenas de mensagens são exibidas. Elas são representadas por ícones diversos e organizadas por data e hora. Uma chamada em tempo real aguarda aceitação, era Cassius, provavelmente irado com o resultado da caçada. Porém, dentre as todas as mensagens, uma em especial chama a atenção de Yuri: um ícone estilizado de um leão em dourado. É o símbolo de Maestro, a quem ele devia vários favores.
Yuri foca mentalmente no ícone, abrindo a mensagem. A imagem de um garoto ruivo, com as bochechas cheias de sardas é exibida. “Thiago Klein, o Hacker de Maestro”, pensa Yuri. “O que será que ele quer comigo? E justo agora?”
Visivelmente ansioso, o rapaz transmite a mensagem rapidamente, não levando mais do que vinte segundos:
“Senhor Coveiro, Maestro precisa da sua ajuda, possivelmente hoje ainda. Um arquivo encriptado com os detalhes dá operação está anexado a esta mensagem. Tenha um bom dia”.
Maestro possui uma das organizações mais poderosas de Vix, uma rede vasta de recursos e contatos importantes. Ele poderia ser um valioso aliado na luta contra a Fúria. Yuri se anima com essa possibilidade, visualiza o arquivo encriptado e pensa na senha especial utilizada para a comunicação com o pessoal de Maestro. O arquivo se abre revelando uma série de dados e fotos: corporação VNR, um bio-hacker chamado de Vampiro, mas que usa o nome falso de Davi, uma bela executiva morena de ascendência oriental, uma agente de segurança com passagem pelas forças especiais, o mítico programa KDCode...
“Interessante, senhor Maestro, acho que vamos trabalhar juntos de novo”.
Enfim os técnicos terminam de remover a armadura, e Yuri se levanta, dirigindo-se para a cabine da nave. No caminho ele passa pela cela onde Marcela foi acorrentada. Ela se assusta ao ver o homem, que está com um aspecto horrível. Ela deduz ser ele o seu captor.
- Não fique assim, loirinha. Logo logo você vai se encontrar com aquele bosta do seu namorado. Eu garanto isso.
Yuri dá uma boa olhada nela, imaginando que seria gratificante torturá-la, mas não, não era o momento ainda. Ele se afasta, assobiando descontraidamente uma melodia qualquer.
Marcela pensa em Jorge, nos sonhos dos dois. Mas agora tudo estava perdido, agora ela só poderia rezar. Então um pensamento brotou em sua mente: aquilo deveria ser algum tipo de punição, o preço a pagar pelos pecados que ela e Jorge cometeram. Ela se lembra dos corpos dos expurgados, de suas faces mortas acometidas pelo terror, pelo pânico. Marcela se joga no chão da cela e começa a chorar, afogada em uma confusão de sentimentos sombrios.
***
No estúdio da Hora do Caçador todos estão impressionados com o episódio. A bela apresentadora entra em cena, acompanhada de um comentarista de aparência jovial. Ambos com expressões entusiasmadas.
- Meu Deus, Greg, eu estou chocada com o desfecho do show de hoje! Não acredito que a Fúria tenha conseguido escapar!
- Minha nossa, Samantha, foi incrível! Eu só tenho a dizer que estou torcendo muito por ela!
- Mas e agora? O que vai acontecer? Nenhum dos dois marcou pontos, certo?
- Exatamente. O caçador só pontua se entregar a presa como o contrato estipula, e nesse caso, o casal é a presa!
- Então não vamos acabar por aqui, certo?
- É claro que não, Sam. Uma nova rodada de apostas será aberta, e assim que um dos dois caçadores entrar em ação, eles deverão nos contactar para que possamos enviar nossos drones, então teremos uma transmissão excepcional e ao vivo, que pode acontecer a qualquer momento!
- Sensacional, Greg! Acho que nunca tivemos um show tão emocionante!
Greg gesticula em concordância com sua colega, então ela olha para a câmera e dá um lindo sorriso, pronunciado suas palavras finais:
- Muito obrigada por assistirem A Hora do Caçador. A ação está só começando, até breve!
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Aspirante a escritor, inquieto por natureza, ainda tenho vontade de mudar o mundo ou pelo menos colocar um monte de gente para pensar. Viciado em livros, games, idéias loucas e sempre procurando coisas que desafiem minha imaginação. |
André, dá para perceber que as cenas são carregadas de ações e a adrenalina é do início ao fim. Desde o primeiro capítulo, porém, está se intensificando, o que torna a obra mais agradável. Ficção científica tem de ser assim. E com certeza já estou encantada pela obra.
ResponderExcluirEspero ler a continuação.
@Desbravadores de Livros
ResponderExcluirValeu, Desbravadores! E como sempre digo, fique a vontade para criticar e comentar absolutamente tudo!
Abraços
André, está cada vez mais emocionante, é tanta ação e situações inusitadas que me fazem querer ler mais e mais. Já estou esperando, ansiosamente, pela próxima parte.
ResponderExcluir@Wanessa Ramos
ResponderExcluirHahahaha, valeu, Vanessa! NA próxima parte volto o foco para Davi e Bel. Abraços.
E não é que estou me apegando à história! Outro dia mesmo estava pensando quando sairia a próxima parte. Bom sinal, né? rs
ResponderExcluirMeu comentário, desta vez, é em relação aos diálogos. Acho que estão bem melhores do que os das primeiras partes. Estão mais naturais, simples, com uma linguagem apropriada (inclusive os "palavrões").
Estou gostando bastante!! Me sinto assistindo a uma série. =)
bjs
@Ana Paula Barreto
ResponderExcluirAna, é muito legal saber disso! :)
Olha, eu reescrevi essa parte umas dez vezes, rs, e digo, não estou 100% satisfeito com o resultado, mas fico contante em saber sua opinião, que me é muito valiosa! Afinal é através das boas críticas que a gente precisa aprender, certo? Abraços!
Incrível, mas tu conseguiu me fazer curtir ficção científica de uma forma que eu não sabia que poderia um dia! Fico esperando os próximos episódios, que inclusive acho que poderiam ter menos espaço entre eles hahahaha Adoro a história, a trama que tu criou é completamente envolvente, e eu já estou apegadíssima aos personagens. O que fazer? hahaha
ResponderExcluir@Patrini Viero
ResponderExcluirRs...Não esperava isso, Patrini. Show que você também está curtindo! Eu concordo com você, poderia ter menos tempo entre as publicações, vou falar com a Gisela, a dona do blog, para ver o que a gente pode fazer. E muito obrigado pelo comentário! Abraços!
Uau, eu adorei a sua forma de escrever e amo uma ação e misturado com ficção cientica,
ResponderExcluirtudo de bom.
Esta ficando mais emocionante a cada parte, eu to ansiosa por mais,
ja sentadinha com a pipoca rs,
beijos.
@Neny
ResponderExcluirLegal, Neny. É legal mesmo colocar algumas partes com ação para movimentar a trama, ainda mais quando tem muitas explicações e termos tecnológicos. Fico feliz que está gostando, e se tiver qualquer crítica ou sugestão pode ficar a vontade para falar. Abraço!
Uauuuu pq vc não escreve mais? Juro que quando vi o tamanho do post falei: MEU DEUS e agora to aqui igual tonta querendo mais! Vc sabe prender as pessoas como mto autor aí não sabe...ainda mais se tratando de ficção! Adorei!
ResponderExcluirBeijão!
Livrofagia || Fanpage
@Blog Livrofagia
ResponderExcluirAssusta mesmo, não é? Confesso que depois que eu escrevi essa parte fiquei uma semana longe do editor de textos...
Muito obrigado pelo comentário, e pela motivação!
Abraço!
Estou adorando acompanhar o desenrolar da estória. Adorando a ação e espero ter oportunidade de continuar acompanhando.
ResponderExcluirParabéns pela critividade.
@Gislaine Silva
ResponderExcluirObrigado, Gislaine. E não se preocupe, é só ficar ligada aqui no Blog que ainda tem muita coisa para acontecer na trama!
Abraços!
Essa trama só vem melhorando a cada capítulo lançado. Parabéns, André!!!
ResponderExcluirEstou adorando acompanhar essa booksérie por aqui. Já aguardando as cenas dos próximos capítulos. kkkk
@_Dom_Dom
Não entendi muito bem, é um conto contado a cada post/capítulo? Uma história extra de algum livro? Vou procurar saber.
ResponderExcluir@Nardonio
ResponderExcluirOi, Nardonio. Obrigado pelo comentário, camarada, estou correndo aqui para finalizar logo as próximas partes. Abraços!
@Erica Martins
ResponderExcluirOlá, Erica. O esquema aqui é o seguinte: é um livro em que vamos publicando os capítulos a cada mês. Cada postagem na categoria "Book Serie" é um novo capítulo. Sinta-se a vontade para comentar e dizer o que achou da história. Abraços!