Engenharia Reversa
Parte VII - I. M. A.
A mulher se movimenta pelo terreno devastado com extrema cautela, a cada passo, examina friamente as ruínas próximas, rechaçadas por disparos de fuzis. Seu uniforme tático, levemente reforçado, branco e azul com placas reluzentes de metal, a deixa em destaque frente a paisagem desolada das ruínas centenárias e do chão de asfalto corroído.
Avançando com o rifle em posição de tiro, alerta a qualquer som ou movimento hostil, ela ativa seu scâner biológico e começa a examinar os corpos à frente, buscando um sinal de vida. A sua direita e a sua esquerda, a dez metros de distância, outros oficiais da UNI-Tron também esquadrinham a área, procurando pelos agentes da VNR e por foras da lei sobreviventes. A maioria dos flymobs da organização partiu em perseguição aos veículos dos terroristas, que rapidamente fugiram após a ação de ataque contra um transporte médico da corporação global.
Através do scâner, cada corpo no chão é contornado graficamente por uma linha digital brilhante, os mortos devem aparecer em vermelho, os que vivem, até o momento nenhum, serão contornados em verde e os feridos em amarelo.
Bem distantes dela e de seus companheiros no terreno desolado, em um grande cordão de isolamento, dezenas de jornalistas e repórteres tentam obter respostas do comandante da operação, enquanto nos céus, em volta da área, centenas de drones-câmeras, impedidos de se aproximar, aplicam o zoom de suas filmadoras tentando obter as melhores tomadas do cenário, retransmitindo tudo em tempo real.
A cadete em treinamento, TX542-5n, interrompe os movimentos por um breve instante, parando para respirar, afinal, está em sua primeira missão de campo. A tensão é forte. Ela aguarda alguns segundos e então é acometida por uma calma avassaladora; a dose de Veradrum fez efeito. Administrada de forma inteligente pelo CND conectado ao traje tático, a droga sintética é um composto preparado para eliminar o estresse e aguçar os reflexos, deixando mente e corpo operarem friamente; se tornou obrigatória para todos os agentes da UNI-Tron.
Bem mais calma, ela adentra mais alguns passos na recente zona de guerra, agora transformada em cemitério. Os corpos espalhados são fáceis de serem classificados usando-se apenas a identificação visual. De acordo com o banco de dados da cyber polícia, os samurais de aluguel usavam roupas negras protegidas por cotas de kevlar, penteados discretos, não gostavam de chamar a atenção, já os blood punks ou soldados das ruas, apreciavam um estilo mais espalhafatoso, não poupando em moicanos exagerados e cores fortes, no entanto, outros também se valiam do mesmo estilo por ser um visual da moda entre os criminosos de rua.
Então, uma imagem se destaca frente a cadete, embora o scâner indique que o homem está morto, ela prontamente reconhece um dos agentes de segurança da VNR. Entusiasmada, entra em contato com seu superior:
- TX542-1, achei um alvo primário, você tem visual? Vou me aproximar para verificar o estado do CND, confirma?
Distante dela, o experiente sargento e líder da equipe não estava gostando nem um pouco de ter que entrar no meio daquela chacina. Normalmente eram os drones ou robôs que faziam aquele tipo de serviço, mas uma ordem superior exigiu que, naquele caso, usassem uma equipe humana, que não poderia gravar nada, deveria estar totalmente desconectada da, usando apenas a rede própria, fechada e somente acessível pelos membros do time. Eles receberam códigos especiais para extrair a "caixa-preta" dos agentes da VNR, que nada mais do que uma parte oculta do CND, um bio-programa exclusivo, que registra tudo que eles viram e fizeram nas últimas horas.
Junto com a equipe de quatro oficiais e uma cadete, um drone de combate paira nos céus, pronto para dar cobertura para o pessoal em terra caso algo de errado aconteça. Somente o sargento tem acesso ao aparelho, que possui armas potentes e câmeras digitais fixadas na parte de baixo do casco, mas é um modelo antigo e não possui um scâner biométrico, infelizmente.
Então, TX542-1, o sargento, acessa o drone, envia as coordenadas passadas pela cadete e dá um zoom no corpo do agente encontrado. "Vai ser um teste e tanto para ela", ele pensa. O estado do corpo é deplorável, feio, muito feio. Com décadas de serviço nas costas, o sargento sabe muito bem que quando um cadete se deparava com uma cena como aquela, ocorria algum de tipo de choque, a barbárie da realidade superava de longe qualquer simulação, e muitos não aguentavam, desistindo do ofício. A maioria dos candidatos a oficiais da corporação de segurança eram oriundos de famílias de classe média ou classe alta, acostumados a um padrão de vida apelidado de "redoma", onde a brutalidade do mundo externo a redoma era muitas vezes escondida ou processada para se parecer com um espetáculo. É uma coisa deplorável, ele sempre pensava, mas necessária após os anos de violência da revolução.
As vezes, o sargente se permitia quebrar o protocolo, era o caso, ele precisava passar mais confiança para a "menina", vinte e cinco anos é a idade dela, para ele, praticamente uma criança. Resolve chamá-la pelo nome, ao invés de sua ID na UNI-Tron, isso dá uma idéia de mais intimidade, de um laço emocional que precisaria de fato ser construído.
- Confirmado, "Érica", aguardando para transmitir código de acesso para a caixa preta.
TX542-5n não esperava que o sargento, sempre de cara fechada e muito sério, a chamasse pelo nome no meio da missão. Em todo caso, não parou para pensar muito naquilo, agachou-se próxima do corpo e o examinou: "Meu Deus", se assusta quando vê o tamanho do buraco no abdômen do agente, as tripas ao lado, a poça de sangue enegrecido na qual os resto dos órgãos internos estão espalhados. Mesmo com todo o Veradrum a menina não se contém, e a ânsia de vômito é muito forte, sente a bile chegando a garganta. Mas Érica sabe bem o que quer, e ser uma oficial da UNI-Tron é sua maior obsessão. Ela faz um esforço demasiado para se controlar, foca a mente, se acalma, logo consegue se conectar ao CND do morto, que agora funciona somente graças as baterias de proton-cândium.
"Mas que coisa... Estou acessando as memórias de um defunto... Não preparam a gente para isso." Sem demora, a jovem insere o código fornecido pelo seu superior, instantaneamente, um fluxo de dados é aberto entre ela e o CND no cadáver. Em questão de segundos centenas de milhares de terabytes são comprimidos em um cristal de memória que ela carrega dentro do traje tático, ligado por um cabo óptico ao seu CND. Objetivo concluído. O suor escorre pela testa dentro do capacete estiloso. Tensão baixando.
- Sargento - ela também esquece o protocolo - pacote recuperado. Por enquanto nenhum terrorista vivo, prosseguindo para ... - Um alerta surge do nada, piscando incessante nas retinas da jovem, ela alterna para o scâner biométrico, a adrenalina volta a subir. - Senhor! Achei um vivo!
- Qual o estado dele? Estou enviando o drone para cobrir sua posição.
- Checando...Está ferido!
Érica aponta o rifle para o homem, aproximando-se para identificá-lo melhor. "Droga! Parece que é um blood punk, não posso dar bobeira!" O zunido das hélices do drone e a sombra da máquina na sua frente a fazem sentir-se mais segura, ela então tenta uma conexão, mas o CND dele está protegido, muito bem protegido por sinal. Vê que o sujeito levou pelo menos dois tiros, um na perna e outro no lado direito do peito, seus sinais vitais estão baixos, porém estáveis. A couraça que usava por baixo da jaqueta ajudou a segurar o sangramento.
Rat Bones percebe a presença dela e solta um gemido, tentando pronunciar a palavra socorro. Érica se assusta, afastando-se dele com um pulo e mirando bem na cabeça.
Então o scâner novamente solta um alerta, mas dessa vez um verde. Na frente da jovem cadete surge o que parecer ser uma mulher em uma armadura esfacelada, mal dá para ver a logomarca no peito, brechas na blindagem revelam horríveis queimaduras pelo corpo, o rosto enegrecido e cheio de hematomas, no lugar de um dos braços, apenas um cotoco com parte do osso humeros à mostra, rios de sangue correm através de frestas na parte abdominal do traje. Érica fica chocada, boquiaberta, sem reação, quase larga o rifle.
- Tem mais dois vivos ali atrás - diz a mulher, a voz rouca pronuncia as palavras da forma mais natural possível - Quero todos eles entregues na sede da VNR o mais rápido possível.
***
Jonas acorda em uma sala sem janelas, praticamente um cubo com paredes lisas e plastificadas em tons claros, além dele e da porta na parede oposta, não há mais nada no cômodo. Seus braços e pernas estão presos à parede por fortes algemas, algum tipo de coleira prende seu pescoço, comprimindo a carne com força. O corpo ainda dói, seus hematomas e ferimentos não foram tratados. Tenta acessar o CND, consegue, mas o mesmo está offline, sem conexão com a hypernet, sem canais para o mundo.
- Merda, merda! - É tudo que consegue dizer.
Em outra sala exatamente igual, Rat Bones, que teve mais sorte pois trataram de seus ferimentos, tenta de todas as formas se soltar, porém quanto mais ele se move mais a coleira aperta seu pescoço. Grita, dominado pela raiva, grita mais alto ainda, e no outro cubo, bem ao lado, Jonas consegue ouvi-lo e imagina o que podem estar fazendo com seu companheiro.
Então, a porta de se abre. Dois agentes da VNR entram na sala arrastando pelos braços um samurai urbano. O prisioneiro está com a cabeça abaixada, exibindo apenas o couro cabeludo, mas Jonas estranha a leve fumaça branca que parece sair do rosto do homem.
Em instantes Amanda aparece. Trajando roupas executivas, seu rosto está bem melhor, doses e mais doses de criogel fizeram um bom trabalho, embora certas cicatrizes jamais vão desaparecer. Agora seus dois braços são biônicos, próteses cibernéticas de última geração. Apesar de manter a postura altiva, Jonas percebe que a mulher anda com certa dificuldade.
- Podem sair da sala.
Os dois agentes se retiram, deixando o corpo do samurai no chão.
Amanda se aproxima de Jonas, encarando o homem, ele sente um pouco de taquicardia, mas já estava preparado para aquilo, em algum momento seria inevitável.
- Olá, Jonas. Já sabemos tudo sobre você, contudo, não descobrimos muita coisa sobre o seu amigo de dreadlocks, como é mesmo o nome dele? - faz uma pausa, observando o prisioneiro, medindo suas reações - Ah, me lembrei: "Maestro", isso?
Eleolha para o chão, indiferente. Ela volta a falar.
- Devo admitir que ele me surpreendeu. Contratar o Caçador de Recompensas e aquela pistola EPM foram boas jogadas.
Dessa vez Jonas a olhou, não sabia bem o que ela era depois de vê-la voltar da morte após ser atingida pelo míssil que ele mesmo lançou, entretanto, não tinha nada a perder.
- Pelo visto o Coveiro te deu uma boa sova, certo, dona?
- Posso dizer o mesmo dele, Jonas. Mas não estou aqui para trocar figurinhas, estou aqui para te propor um acordo.
O mercenário fecha a cara.
- Não faço acordos com cobras corporativas. Me mate logo, não tô nem aí para você e sua empresa de merda. Bando de escrotos que só fodem o mundo...
Ela dá de ombros, então prossegue.
- É simples, só queremos saber onde fica a base de operações do Maestro e quem são seus associados mais próximos. Seja lá quem ele for, o cara sabe muito bem esconder seus passos. E essa informação está aí, dentro da sua cabeça.
- É claro que está! Só não entendo como vocês, que se acham tão bons, ainda não hackearam meu sistema para obté-la... Deixa eu imaginar, tentaram primeiro com o colega aí, não foi? Mas provavelmente ele não se vendeu e vocês ferraram o cara, né? Seus bostas!
"Que animal", ela pensa. Mas percebe que a emoção começou a aflorar no homem, baixando suas defesas emocionais.
- Quase isso. Acontece que existe um bio-programa, de certo instalado por Maestro, que está dificultando nosso acesso as memórias que queremos.
Jonas esboça um sorriso. Em seguida grita com furor.
- Boa, Maestro! Valeu!
Amanda balança a cabeça em negativa, então se aproxima do corpo do samurai urbano e segura nos cabelos do homem, levantando a cabeça dele e exibindo seu rosto para Jonas.
- O programa só torna o processo mais demorado, Jonas, e restringe o número de memórias que conseguimos acessar antes do prisioneiro morrer, mas, no fim, prevalecemos. Já temos alguma coisa, porém precisamos de mais, precisamos de você e do seu amigo raquítico, que por acaso está aqui do lado.
Jonas fica horrorizado com o que vê. O rosto do homem está completamente deformado, derretido, como se tivesse sido exposto a uma fornalha. O que eram antes olhos, nariz e boca, agora não passam de uma massa desforme e grotesca, queimada, exalando uma parca fumaça branca.
- Temos permissão para executar uma I.M.A em cada um de vocês, e acredite em mim, eu preferiria que houvesse outra forma, mas esse homem, esse "Maestro", é um terrorista, uma ameaça para a população e para as corporações, ele precisa ser detido a qualquer custo.
"I.M.A", abreviação para "Invasão Mental Autorizada", é um procedimento tão perverso e cruel que somente a corte suprema da GFA pode permitir sua execução, nem a mais poderosa CG utiliza desse artificio sem o consenso da corte. O processo consiste em invadir de forma hostil a mente da vítima, através de equipamento específico, conhecido como "fusor de Boltzmann", e usando um protocolo de transmissão de dados sem fio, baseado em microondas. Dessa forma é possível quebrar facilmente qualquer tipo de defesa bio-digital, inclusive o Biocrom, além disso, o processo é tão traumático que rompe facilmente as defesas psíquicas e naturais da mente do alvo.
Enquanto está em execução a I.M.A literalmente derrete o CND, utilizando o campo de microondas para clonar de uma única vez todas as memórias da vítima, como uma antiga máquina de xerox. Ao final, o calor e a radiação provocam o derretimento do cérebro e a deformidade facial, mas nesse estágio a pessoa já está morta devido ao derretimento de seu bio-computador. Não é um processo barato e requer uma grande estrutura para entrar em funcionamento, parte dessa estrutura são os cubículos onde Jonas e Rat Bones estão aprisionados.
Jonas já tinha ouvido falar daquilo, mas jamais imaginou que morreria através da I.M.A. Amanda prontamente percebe o pânico no olhar do homem.
- Além de ser algo quase medieval, senhor Jonas, para cada execução da I.M.A devemos pagar uma taxa nada razoável, suficiente para comprar uma pequena cidade. A proposta é a seguinte: Basta nos dizer onde fica o covil de Maestro e passar a descrição de seus ajudantes, em troca você ficará trinta anos preso em regime fechado e então será congelado e enviado para a crio-prisão, por mais duzentos anos. Ao ser solto ainda terá a idade de 72 anos, sem direito a qualquer tipo de cirurgia de reposição corporal, mas ainda poderá viver muito se cuidar da saúde.
Jonas olha bem para o rosto do desafortunado samurai, reflete, pensa em sua vida e em todas as besteiras que fez.
- E o meu companheiro, e o Rat Bones?
- A mesma proposta está sendo feita para ele nesse momento. Quem sabe os senhores não se encontraram em um futuro melhor? E então, Jonas, o que vai ser? Seu tempo acabou.
Amanda ativa um comando mental. Uma escotilha de dois metros de diâmetro se abre no teto e de dentro dela sai uma máquina grotesca, que lembra de longe um telescópio, porém cheio de fios e cabos desconexos, que correm para dentro da escotilha, presos a uma parte maior e não visível do equipamento.
Jonas não tem mais dúvidas, qualquer coisa era melhor do que morrer daquele jeito.
- Eu aceito.
Amanda sorri.
- As vezes, nossas melhores lutas não são travadas no campo de batalha. Espero que você aprenda pelo menos essa lição.
Avançando com o rifle em posição de tiro, alerta a qualquer som ou movimento hostil, ela ativa seu scâner biológico e começa a examinar os corpos à frente, buscando um sinal de vida. A sua direita e a sua esquerda, a dez metros de distância, outros oficiais da UNI-Tron também esquadrinham a área, procurando pelos agentes da VNR e por foras da lei sobreviventes. A maioria dos flymobs da organização partiu em perseguição aos veículos dos terroristas, que rapidamente fugiram após a ação de ataque contra um transporte médico da corporação global.
Através do scâner, cada corpo no chão é contornado graficamente por uma linha digital brilhante, os mortos devem aparecer em vermelho, os que vivem, até o momento nenhum, serão contornados em verde e os feridos em amarelo.
Bem distantes dela e de seus companheiros no terreno desolado, em um grande cordão de isolamento, dezenas de jornalistas e repórteres tentam obter respostas do comandante da operação, enquanto nos céus, em volta da área, centenas de drones-câmeras, impedidos de se aproximar, aplicam o zoom de suas filmadoras tentando obter as melhores tomadas do cenário, retransmitindo tudo em tempo real.
A cadete em treinamento, TX542-5n, interrompe os movimentos por um breve instante, parando para respirar, afinal, está em sua primeira missão de campo. A tensão é forte. Ela aguarda alguns segundos e então é acometida por uma calma avassaladora; a dose de Veradrum fez efeito. Administrada de forma inteligente pelo CND conectado ao traje tático, a droga sintética é um composto preparado para eliminar o estresse e aguçar os reflexos, deixando mente e corpo operarem friamente; se tornou obrigatória para todos os agentes da UNI-Tron.
Bem mais calma, ela adentra mais alguns passos na recente zona de guerra, agora transformada em cemitério. Os corpos espalhados são fáceis de serem classificados usando-se apenas a identificação visual. De acordo com o banco de dados da cyber polícia, os samurais de aluguel usavam roupas negras protegidas por cotas de kevlar, penteados discretos, não gostavam de chamar a atenção, já os blood punks ou soldados das ruas, apreciavam um estilo mais espalhafatoso, não poupando em moicanos exagerados e cores fortes, no entanto, outros também se valiam do mesmo estilo por ser um visual da moda entre os criminosos de rua.
Então, uma imagem se destaca frente a cadete, embora o scâner indique que o homem está morto, ela prontamente reconhece um dos agentes de segurança da VNR. Entusiasmada, entra em contato com seu superior:
- TX542-1, achei um alvo primário, você tem visual? Vou me aproximar para verificar o estado do CND, confirma?
Distante dela, o experiente sargento e líder da equipe não estava gostando nem um pouco de ter que entrar no meio daquela chacina. Normalmente eram os drones ou robôs que faziam aquele tipo de serviço, mas uma ordem superior exigiu que, naquele caso, usassem uma equipe humana, que não poderia gravar nada, deveria estar totalmente desconectada da, usando apenas a rede própria, fechada e somente acessível pelos membros do time. Eles receberam códigos especiais para extrair a "caixa-preta" dos agentes da VNR, que nada mais do que uma parte oculta do CND, um bio-programa exclusivo, que registra tudo que eles viram e fizeram nas últimas horas.
Junto com a equipe de quatro oficiais e uma cadete, um drone de combate paira nos céus, pronto para dar cobertura para o pessoal em terra caso algo de errado aconteça. Somente o sargento tem acesso ao aparelho, que possui armas potentes e câmeras digitais fixadas na parte de baixo do casco, mas é um modelo antigo e não possui um scâner biométrico, infelizmente.
Então, TX542-1, o sargento, acessa o drone, envia as coordenadas passadas pela cadete e dá um zoom no corpo do agente encontrado. "Vai ser um teste e tanto para ela", ele pensa. O estado do corpo é deplorável, feio, muito feio. Com décadas de serviço nas costas, o sargento sabe muito bem que quando um cadete se deparava com uma cena como aquela, ocorria algum de tipo de choque, a barbárie da realidade superava de longe qualquer simulação, e muitos não aguentavam, desistindo do ofício. A maioria dos candidatos a oficiais da corporação de segurança eram oriundos de famílias de classe média ou classe alta, acostumados a um padrão de vida apelidado de "redoma", onde a brutalidade do mundo externo a redoma era muitas vezes escondida ou processada para se parecer com um espetáculo. É uma coisa deplorável, ele sempre pensava, mas necessária após os anos de violência da revolução.
As vezes, o sargente se permitia quebrar o protocolo, era o caso, ele precisava passar mais confiança para a "menina", vinte e cinco anos é a idade dela, para ele, praticamente uma criança. Resolve chamá-la pelo nome, ao invés de sua ID na UNI-Tron, isso dá uma idéia de mais intimidade, de um laço emocional que precisaria de fato ser construído.
- Confirmado, "Érica", aguardando para transmitir código de acesso para a caixa preta.
TX542-5n não esperava que o sargento, sempre de cara fechada e muito sério, a chamasse pelo nome no meio da missão. Em todo caso, não parou para pensar muito naquilo, agachou-se próxima do corpo e o examinou: "Meu Deus", se assusta quando vê o tamanho do buraco no abdômen do agente, as tripas ao lado, a poça de sangue enegrecido na qual os resto dos órgãos internos estão espalhados. Mesmo com todo o Veradrum a menina não se contém, e a ânsia de vômito é muito forte, sente a bile chegando a garganta. Mas Érica sabe bem o que quer, e ser uma oficial da UNI-Tron é sua maior obsessão. Ela faz um esforço demasiado para se controlar, foca a mente, se acalma, logo consegue se conectar ao CND do morto, que agora funciona somente graças as baterias de proton-cândium.
"Mas que coisa... Estou acessando as memórias de um defunto... Não preparam a gente para isso." Sem demora, a jovem insere o código fornecido pelo seu superior, instantaneamente, um fluxo de dados é aberto entre ela e o CND no cadáver. Em questão de segundos centenas de milhares de terabytes são comprimidos em um cristal de memória que ela carrega dentro do traje tático, ligado por um cabo óptico ao seu CND. Objetivo concluído. O suor escorre pela testa dentro do capacete estiloso. Tensão baixando.
- Sargento - ela também esquece o protocolo - pacote recuperado. Por enquanto nenhum terrorista vivo, prosseguindo para ... - Um alerta surge do nada, piscando incessante nas retinas da jovem, ela alterna para o scâner biométrico, a adrenalina volta a subir. - Senhor! Achei um vivo!
- Qual o estado dele? Estou enviando o drone para cobrir sua posição.
- Checando...Está ferido!
Érica aponta o rifle para o homem, aproximando-se para identificá-lo melhor. "Droga! Parece que é um blood punk, não posso dar bobeira!" O zunido das hélices do drone e a sombra da máquina na sua frente a fazem sentir-se mais segura, ela então tenta uma conexão, mas o CND dele está protegido, muito bem protegido por sinal. Vê que o sujeito levou pelo menos dois tiros, um na perna e outro no lado direito do peito, seus sinais vitais estão baixos, porém estáveis. A couraça que usava por baixo da jaqueta ajudou a segurar o sangramento.
Rat Bones percebe a presença dela e solta um gemido, tentando pronunciar a palavra socorro. Érica se assusta, afastando-se dele com um pulo e mirando bem na cabeça.
Então o scâner novamente solta um alerta, mas dessa vez um verde. Na frente da jovem cadete surge o que parecer ser uma mulher em uma armadura esfacelada, mal dá para ver a logomarca no peito, brechas na blindagem revelam horríveis queimaduras pelo corpo, o rosto enegrecido e cheio de hematomas, no lugar de um dos braços, apenas um cotoco com parte do osso humeros à mostra, rios de sangue correm através de frestas na parte abdominal do traje. Érica fica chocada, boquiaberta, sem reação, quase larga o rifle.
- Tem mais dois vivos ali atrás - diz a mulher, a voz rouca pronuncia as palavras da forma mais natural possível - Quero todos eles entregues na sede da VNR o mais rápido possível.
***
Jonas acorda em uma sala sem janelas, praticamente um cubo com paredes lisas e plastificadas em tons claros, além dele e da porta na parede oposta, não há mais nada no cômodo. Seus braços e pernas estão presos à parede por fortes algemas, algum tipo de coleira prende seu pescoço, comprimindo a carne com força. O corpo ainda dói, seus hematomas e ferimentos não foram tratados. Tenta acessar o CND, consegue, mas o mesmo está offline, sem conexão com a hypernet, sem canais para o mundo.
- Merda, merda! - É tudo que consegue dizer.
Em outra sala exatamente igual, Rat Bones, que teve mais sorte pois trataram de seus ferimentos, tenta de todas as formas se soltar, porém quanto mais ele se move mais a coleira aperta seu pescoço. Grita, dominado pela raiva, grita mais alto ainda, e no outro cubo, bem ao lado, Jonas consegue ouvi-lo e imagina o que podem estar fazendo com seu companheiro.
Então, a porta de se abre. Dois agentes da VNR entram na sala arrastando pelos braços um samurai urbano. O prisioneiro está com a cabeça abaixada, exibindo apenas o couro cabeludo, mas Jonas estranha a leve fumaça branca que parece sair do rosto do homem.
Em instantes Amanda aparece. Trajando roupas executivas, seu rosto está bem melhor, doses e mais doses de criogel fizeram um bom trabalho, embora certas cicatrizes jamais vão desaparecer. Agora seus dois braços são biônicos, próteses cibernéticas de última geração. Apesar de manter a postura altiva, Jonas percebe que a mulher anda com certa dificuldade.
- Podem sair da sala.
Os dois agentes se retiram, deixando o corpo do samurai no chão.
Amanda se aproxima de Jonas, encarando o homem, ele sente um pouco de taquicardia, mas já estava preparado para aquilo, em algum momento seria inevitável.
- Olá, Jonas. Já sabemos tudo sobre você, contudo, não descobrimos muita coisa sobre o seu amigo de dreadlocks, como é mesmo o nome dele? - faz uma pausa, observando o prisioneiro, medindo suas reações - Ah, me lembrei: "Maestro", isso?
Eleolha para o chão, indiferente. Ela volta a falar.
- Devo admitir que ele me surpreendeu. Contratar o Caçador de Recompensas e aquela pistola EPM foram boas jogadas.
Dessa vez Jonas a olhou, não sabia bem o que ela era depois de vê-la voltar da morte após ser atingida pelo míssil que ele mesmo lançou, entretanto, não tinha nada a perder.
- Pelo visto o Coveiro te deu uma boa sova, certo, dona?
- Posso dizer o mesmo dele, Jonas. Mas não estou aqui para trocar figurinhas, estou aqui para te propor um acordo.
O mercenário fecha a cara.
- Não faço acordos com cobras corporativas. Me mate logo, não tô nem aí para você e sua empresa de merda. Bando de escrotos que só fodem o mundo...
Ela dá de ombros, então prossegue.
- É simples, só queremos saber onde fica a base de operações do Maestro e quem são seus associados mais próximos. Seja lá quem ele for, o cara sabe muito bem esconder seus passos. E essa informação está aí, dentro da sua cabeça.
- É claro que está! Só não entendo como vocês, que se acham tão bons, ainda não hackearam meu sistema para obté-la... Deixa eu imaginar, tentaram primeiro com o colega aí, não foi? Mas provavelmente ele não se vendeu e vocês ferraram o cara, né? Seus bostas!
"Que animal", ela pensa. Mas percebe que a emoção começou a aflorar no homem, baixando suas defesas emocionais.
- Quase isso. Acontece que existe um bio-programa, de certo instalado por Maestro, que está dificultando nosso acesso as memórias que queremos.
Jonas esboça um sorriso. Em seguida grita com furor.
- Boa, Maestro! Valeu!
Amanda balança a cabeça em negativa, então se aproxima do corpo do samurai urbano e segura nos cabelos do homem, levantando a cabeça dele e exibindo seu rosto para Jonas.
- O programa só torna o processo mais demorado, Jonas, e restringe o número de memórias que conseguimos acessar antes do prisioneiro morrer, mas, no fim, prevalecemos. Já temos alguma coisa, porém precisamos de mais, precisamos de você e do seu amigo raquítico, que por acaso está aqui do lado.
Jonas fica horrorizado com o que vê. O rosto do homem está completamente deformado, derretido, como se tivesse sido exposto a uma fornalha. O que eram antes olhos, nariz e boca, agora não passam de uma massa desforme e grotesca, queimada, exalando uma parca fumaça branca.
- Temos permissão para executar uma I.M.A em cada um de vocês, e acredite em mim, eu preferiria que houvesse outra forma, mas esse homem, esse "Maestro", é um terrorista, uma ameaça para a população e para as corporações, ele precisa ser detido a qualquer custo.
"I.M.A", abreviação para "Invasão Mental Autorizada", é um procedimento tão perverso e cruel que somente a corte suprema da GFA pode permitir sua execução, nem a mais poderosa CG utiliza desse artificio sem o consenso da corte. O processo consiste em invadir de forma hostil a mente da vítima, através de equipamento específico, conhecido como "fusor de Boltzmann", e usando um protocolo de transmissão de dados sem fio, baseado em microondas. Dessa forma é possível quebrar facilmente qualquer tipo de defesa bio-digital, inclusive o Biocrom, além disso, o processo é tão traumático que rompe facilmente as defesas psíquicas e naturais da mente do alvo.
Enquanto está em execução a I.M.A literalmente derrete o CND, utilizando o campo de microondas para clonar de uma única vez todas as memórias da vítima, como uma antiga máquina de xerox. Ao final, o calor e a radiação provocam o derretimento do cérebro e a deformidade facial, mas nesse estágio a pessoa já está morta devido ao derretimento de seu bio-computador. Não é um processo barato e requer uma grande estrutura para entrar em funcionamento, parte dessa estrutura são os cubículos onde Jonas e Rat Bones estão aprisionados.
Jonas já tinha ouvido falar daquilo, mas jamais imaginou que morreria através da I.M.A. Amanda prontamente percebe o pânico no olhar do homem.
- Além de ser algo quase medieval, senhor Jonas, para cada execução da I.M.A devemos pagar uma taxa nada razoável, suficiente para comprar uma pequena cidade. A proposta é a seguinte: Basta nos dizer onde fica o covil de Maestro e passar a descrição de seus ajudantes, em troca você ficará trinta anos preso em regime fechado e então será congelado e enviado para a crio-prisão, por mais duzentos anos. Ao ser solto ainda terá a idade de 72 anos, sem direito a qualquer tipo de cirurgia de reposição corporal, mas ainda poderá viver muito se cuidar da saúde.
Jonas olha bem para o rosto do desafortunado samurai, reflete, pensa em sua vida e em todas as besteiras que fez.
- E o meu companheiro, e o Rat Bones?
- A mesma proposta está sendo feita para ele nesse momento. Quem sabe os senhores não se encontraram em um futuro melhor? E então, Jonas, o que vai ser? Seu tempo acabou.
Amanda ativa um comando mental. Uma escotilha de dois metros de diâmetro se abre no teto e de dentro dela sai uma máquina grotesca, que lembra de longe um telescópio, porém cheio de fios e cabos desconexos, que correm para dentro da escotilha, presos a uma parte maior e não visível do equipamento.
Jonas não tem mais dúvidas, qualquer coisa era melhor do que morrer daquele jeito.
- Eu aceito.
Amanda sorri.
- As vezes, nossas melhores lutas não são travadas no campo de batalha. Espero que você aprenda pelo menos essa lição.
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Aspirante a escritor, inquieto por natureza, ainda tenho vontade de mudar o mundo ou pelo menos colocar um monte de gente para pensar. Viciado em livros, games, idéias loucas e sempre procurando coisas que desafiem minha imaginação. |
Adorando acompanhar a estória. Que pena que a curiosidade fala mais alto e tenho que esperar um pouco para ler mais. Mas tudo bem; bora esperar o próximo capítulo.
ResponderExcluirSua criatividade é inquestionável e tem me chamado muito atenção, a forma como você consegue detalhar os fatos. Está cada vez melhor. Fiquei chocada aqui com esse I.M.A. Com certeza, uma das piores formas de se perder a vida. Mas, como toda escolha tem sua consequência, algo me diz que com Jonas não será diferente. O jeito é esperar, né rsrs. Curiosa!
ResponderExcluir@Gislaine Silva
ResponderExcluirPróxima parte sai dia 19, Gislaine! Tá pertinho!
@Larissa Oliveira
ResponderExcluirRealmente, frente a uma escolha daquelas era melhor ser preso!
Obrigado pelo comentário, Larissa. Dia 19 tem novo capítulo!
Comecei a acompanhar a história e com certeza me surpreendi. A premissa é super instigante e sua criatividade é, como no comentário acima, inquestionável. São capítulos super bem elaborados que nos dá aquele gostinho de quero mais. Parabéns o//
ResponderExcluirAbraços,
Rodolfo
Atributos de Verão
@Atributos de Verão Obrigado! Como eu sempre digo, cada feedback recebido é um incentivo a mais!
ResponderExcluirAbraços!
André!
ResponderExcluirEstá cada vez melhor. Gosto demais de ficção e a sua é bem criativa, além de ter certa filosofia: - "As vezes, nossas melhores lutas não são travadas no campo de batalha. " e temos de aprender que batalhas lutar...
Parabéns!
“A vida sem ciência é uma espécie de morte.”(Sócrates)
Cheirinhos
Rudy
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
@RUDYNALVA
ResponderExcluirNão sei nem o que dizer, Rudy! Certamente você é uma grande incentivadora do meu trabalho! Só posso mesmo agradecer: muito, muito obrigado!
Abraços
É surpreendente como consigo visualizar a cena que você escreve, mesmo Engenharia Reversa não sendo meu estilo de leitura, geralmente acontece de eu ficar perdidinha com os termos desse gênero, mas isso não acontece com sua história. Amei o capítulo, ansiosa para ler o próximo!!
ResponderExcluirBjos!
@Any
ResponderExcluirAny, muito legal! Fazer o leitor visualizar a cena é um desafio e tanto! Muito grato por suas palavras! Abraços!
Já está ficando difícil elogiar sua escrita, André! Ficando extremamente repetitivo. E lá vamos nós esperar por mais um capítulo.
ResponderExcluir@_Dom_Dom
@Nardonio
ResponderExcluirRisos...
@Nardonio
ResponderExcluirOlha, quero publicar logo os próximos! Dar uma sacudida na história!