Engenharia Reversa
Parte XXVI - A Cidade de Granito
Após quilômetros de estradas em ruínas e terrenos mortos, o Lobo do Deserto adentra uma região onde, pela primeira vez na viagem, um pouco de verde se faz presente. A rota agora corta um grande planalto, repleto de arbustos esparsados que convivem harmoniosamente com pequenas árvores de troncos retorcidos.
Marcela desce para o compartimento de passageiros, trazendo duas bebidas. Encontra Thiago, que está com a poltrona reclinada ao máximo, confortável, mas muito longe do que uma cama de verdade pode oferecer.
- Tá aqui. Era o último de laranja. Você vai ter que se contentar com uva a partir de agora.
Thiago devolve um sorriso sincero, com os olhos brilhando. A loira se aproxima e beija os lábios do jovem, com delicadeza; então ela se senta na poltrona ao lado, observando o rapaz de um jeito curioso.
- Eu me perguntava quando você iria tomar a iniciativa. - Diz ela.
- Ah! Se dependesse dele, nunca! - Davi proclama do outro lado da sala, com um sorriso debochado.
- É lógico que eu iria! Só estava esperando o momento certo. - responde Thiago com um olhar incisivo para Davi.
- Mas que bobeira! As vezes vocês parecem duas crianças.
- Menos, loirinha. Na verdade eu e o Thiagão estamos desenvolvendo uma relação de irmãos, entende? Ele é o caçula, e eu, como o mais velho e experiente, dou todas as orientações!
Marcela ri, então se volta para o biohacker:
- Eu acho que você pegou sol de mais na cabeça!
- Ou andou bebendo muito aquele combustível de trator que o Samuel chama de vodca especial... - Complementa Thiago, se espreguiçando na poltrona. Marcela olha para ele, concordando e rindo.
- Ha ha, vocês são hilários, já pensaram em ganhar a vida num palco? Contando piadinhas? - Responde Davi, cético.
- Só se você for com a gente! Afinal, você é de longe o mais talentoso em falar besteiras!- Marcela pisca para ele.
- Marcela, quer saber de uma coisa?
- Diga, sou só ouvidos!
Davi fecha a cara e se volta para o teclado no painel a sua frente, ficando de costas para os dois.
- Deixa prá lá. Não vale a pena.
- Também acho! Pela primeira vez concordo com você, Davi! - Responde a loira com um sorriso de satisfação.
- Ei, pessoal! - Grita Thiago, se levantando da poltrona. - Olhem lá! Nos monitores!
- Caraca, são árvores? - Questiona Davi, assombrado.
- Não só árvores! Dá um zoom ali! - Marcela aponta para uma região dentro da tela.
Thiago pula para o console de comando e amplia o zoom ótico das câmeras, que passam a exibir um vasto campo cheio de plantas de folhas amarelas, e, entre elas, centenas de pessoas usando ferramentas estranhas enchem caçambas alaranjadas com ramos recém colhidos.
- Não acredito! É uma plantação! E eles estão fazendo a colheita!
- Eles estão fazendo o quê? - Questiona Marcela, acompanhada pelo olhar curioso de Davi.
- Uma colheita! Antigamente, as pessoas plantavam na terra, então, depois de um tempo, era preciso pegar as frutas, os cereais, os legumes, esse processo era chamado de colheita!
- Na terra? Quer dizer que eles não tinham fazendas hidropônicas? Como vão garantir que essas plantas não estão contaminadas?
- Bom, sobre isso eu não faço a menor ideia, mas com certeza naquele tempo não haviam tantas indústrias envenenando o solo... enfim, acho que estamos nos aproximando do Brasil!
- Não é o Brasil, ainda. - Responde Bel de súbito, entrando no compartimento e atraindo os olhares.
- Então que lugar é esse? - Pergunta Davi
- Nova Esperança, uma cidade livre.
- Nunca ouvi falar!
Thiago se aproxima de Bel, ficando entre ela e Davi, então ele sorri e olha com gratidão para a biocomputador.
- Muito obrigado pelo que você fez por mim, Bel; você salvou a minha vida!
Marcela se junta ao namorado.
- Muito obrigada, mesmo! Sem você, estaríamos todos nas mãos da VNR agora.
- Que isso. Eu só fiz o que tinha que ser feito.
- Você é muito modesta! - Responde Marcela.
Bel devolve um sorriso radiante.
- Não fiz mais do que obrigação, aposto que vocês fariam o mesmo por mim!
- Pode apostar, com toda certeza! - Responde Thiago.
- Mas que diabo de lugar é essa, Nova Esperança? Isso não tá em nenhum mapa! - Davi franze a testa.
- É uma cidade livre! - Maestro entra no compartimento - Significa que nenhuma corporação ou país tem jurisdição sobre ela. - ele se aproxima de um console e mexe em alguns botões - Vejam!
- Caramba, aquilo é uma muralha? - Pergunta Thiago, boquiaberto, apontado para o monitor acima do console de Maestro.
A imagem exibe uma extensa fortificação feita com grandes blocos de granito, sobre a qual, separados por algumas dezenas de metros, grandes canhões vigiam os céus. Maestro dá um zoom, exibindo guardas fortemente armados patrulhando ao longo da fortificação.
- Vamos lá pra cima, vocês precisam ver isso com seus próprios olhos. - Maestro chama o grupo.
Rapidamente eles sobem a escada em caracol, chegando ao bar panorâmico.
- Samuel, pode abrir o bar. - Diz Maestro através de seu comunicador interno.
- Como assim abrir o bar? - Questiona Marcela, acompanhada pelos olhares dos outros.
- Ainda tenho alguns segredinhos para revelar, loirinha! - Responde Samuel através dos alto-falantes.
Uma engrenagem estala e logo os painéis de metal que formam as paredes do bar começam a descer, entrando na carcaça do Lobo, com exceção da parte de trás da bancada, que permanece imóvel.
- Rápido, peguem as cadeiras e coloquem ali atrás - Pede Maestro, apontando para a bancada.
Então as mesas também começam a descer, e logo todo o bar panorâmico está completamente aberto. O vento os atinge, fazendo os cabelos de Bel e de Marcela se agitarem. Maravilhados, eles observam a vasta plantação que se estende ao longo da muralha branca. Centenas de agricultores trabalham nos campos, seguidos por um exército dos pequenos carrinhos de caçamba laranja.
Eles podem ver que o Lobo do Deserto está em uma fila que se dirige para um imenso portão escavado em um bloco de granito ainda maior. Ao lado deles existe outra fila, mas essa seguindo em sentindo contrário, saindo da cidade. Os veículos são todos rústicos, muito semelhantes aos utilizados pela Falange, porém, existem muitos caminhões repletos de expurgados, e outros tantos cheios de carga. Veículos armados com metralhadoras estão posicionados em vários pontos ao longo da estrada, alertas para qualquer movimentação estranha. Os guardas se destacam: eles usam capacetes verdes que cobrem o rosto por completo e roupas de mesma cor, mas é o símbolo que todos trazem estampado no peito que atrai os olhares dos recém chegados: um desenho do perfil de uma ave, em cor branca. É o mesmo desenho pintado acima do grande portão, porém, ali ele está muito mais detalhado do que nos trajes dos homens armados. Intrigada, Bel examina seu banco de dados e em instantes descobre que se trata de uma antiga ave, já extinta, chamada de "Gavião-real".
- Como eles conseguiram construir uma muralha desse tamanho bem no meio do nada? E essas plantações todas? Como isso é possível? - Inquere Thiago, impressionado.
- E como a GFA permite que um lugar como esse exista? - Complementa Marcela.
- Bem, a GFA e todas as suas mega corporações não dão a mínima para Nova Esperança, eles não tem nenhum poder ou influência aqui, inclusive, qualquer veículo que se aproximar da cidade sem um código de acesso é intimado a dar meia volta, e se isso não acontecer, aqueles canhões ali reforçam a mensagem - responde Maestro.
- Então, se ficarmos aqui, estaremos seguros! Amanda jamais se atreveria a nos atacar dentro da cidade!
Davi e Marcela se empolgam e concordam com Thiago, mas Maestro se mantém sério.
- Não é bem assim. Nova Esperança é uma cidade livre, mas, como você pode ver, são muito atrasados tecnologicamente. Aqueles canhões são da época do revolução, os armamentos dos soldados são antiquados, não conseguiriam penetrar uma armadura padrão da VNR.
- Mas, Maestro, o Lobo do Deserto também é do tempo da revolução, e ele acabou com a Falange! - Intervém Davi.
- Não é a mesma coisa. O Lobo foi aperfeiçoado, foi restaurado. Entendam, uma GC poderia facilmente infiltrar um agente ou um exército na cidade, eles dominariam Nova Esperança em apenas algumas horas. A cidade não tem defesas eletrônicas, usa sistemas de computação arcaicos, não existe a menor sombra de biotecnologia, CND's, nada disso. Estamos mais seguros dentro do Lobo do que dentro dessas muralhas, podem acreditar.
A resposta de Maestro atinge os três jovens como uma lâmina congelada, encerrando prematuramente a vida de qualquer esperança que tenha nascido nos últimos minutos.
A fila de veículos parece acelerar, e rapidamente o Lobo se aproxima do grande portão. Debaixo da estrutura eles percebem que a rocha é bem mais larga do que parecia, e o portão revela ser a entrada de um túnel. Uma rápida escuridão é logo suplantada por luzes amarelas que emanam do teto.
Alguns minutos se passam, então a claridade do dia anuncia que eles estão entrando efetivamente em Nova Esperança. As duas pistas se dividem e cada uma se curva para um lado. As curvas continuam em um declive, que logo começa a ficar mais inclinado e força os veículos a diminuírem a velocidade.
- É melhor entrarmos! Não vamos conseguir ficar em pé! - Diz Maestro.
Porém, antes de descerem para o compartimento de passageiros, os jovens percebem, impressionados, que agora eles estão entrando em uma espécie de cratera, que se prolonga por dezenas de metros terra a dentro, e nas paredes da mesma, andares com entradas amplas e retangulares recebem os veículos da pista em que o Lobo está, enquanto do lado oposto, para onde a outra pista corre, outros veículos saem das garagens carregados de materiais e de expurgados.
- Estamos chegando na área de desembarque, vamos passar essa noite em Nova Esperança e amanhã já pegamos a estrada de novo, aproveitem para dormir em uma cama de verdade! - Diz Samuel pelos alto-falantes.
O Lobo adentra a garagem de número 177-G; o pático interno é amplo, com vários cubículos onde os veículos estacionam, mecânicos, trabalhadores e guardas armados estão por toda parte. O grande striker manobra e entra de ré em sua vaga, enfim, desligando os motores.
Após sair do Lobo, o grupo segue por um caminho demarcado no piso onde setas amarelas os levam para uma porta bem no final do pátio. A porta dá para um extenso e largo corredor, onde uma multidão de expurgados e trabalhadores caminha para a mesma direção.
- Agora é só seguir o fluxo, moçada, bora! - Diz Samuel, entusiasmado.
- Pessoal, fiquem atentos. Bel, ao menor sinal de atividade biodigital me avise, ok? - Pede Maestro.
Bel assente e o grupo começa a andar, entrando no meio da multidão. Dez minutos depois eles chegam a um grande salão, onde as pessoas embarcam em monotrilhos. Nas paredes, em várias plataformas, guardas armados observam a tudo e a todos. Eles pegam um monotrilho e algum tempo depois chegam a uma estação, a saída da mesma é uma larga e longa escadaria, que verte para cima. Na estação os guardas são diferentes, não usam mais capacetes e os trajes são azuis e sem proteção, como policiais de rua. O grupo sobe pela escadaria, Maestro e Thiago vão na frente enquanto Davi e Samuel seguem pela retaguarda, Bel e Marcela estão entre as duas duplas.
A medida que se aproximam da saída a luz natural aumenta, ofuscando a iluminação artificial da estação. Juntamente com centenas de pessoas eles chegam na superfície, então param e observam com curiosidade o cenário que se apresenta: muitos prédios de poucos andares, todos quadrados e brancos com janelas retangulares e rústicas, cada um parece ser uma pedra de granito que foi trabalhada inteiramente para ser habitável. Os espaços entre os edifícios são amplos, e um mundaréu de gente circula por todos os lados. Nenhum tipo de veículo é avistado, exceto as bicicletas, centenas delas dividem o espaço com as pessoas. Todos os prédios são mais ou menos da mesma altura, alguns menores, outros um pouco maiores, e o chão é composto por paralelepípedos, milhares deles.
A maioria dos habitantes usa roupas simples, túnicas, mantas, panos enrolados pelo corpo. Muitos são expurgados, identificáveis pelas vestes sujas e cabelos desgrenhados, mas todos que usam túnicas as possuem bem limpas, cabelos bem tratados e uma postura diferente, um tanto altiva, Bel supõe que estes são os nativos do lugar. Entretanto, pessoas com vestes semelhantes as do grupo circulam no meio do povo, em um número muito pequeno, mas que acabam se destacando na multidão, "passageiros de outros strikers", ela presume.
- Eu nunca imaginei que um lugar como esse existisse, uma metrópole livre no meio do nada! - Diz Marcela, arregalando os olhos.
- Metrópole? Tá maluca? Isso aqui está mais para uma grande zona de exclusão! - Responde sarcasticamente Davi.
- Favela ou não, eu só quero que as camas sejam bem macias! - Diz Thiago, recebendo o apoio de Marcela.
- Isso aqui está longe de ser uma zona de exclusão, Davi, certamente você nunca pisou em uma. - Diz Marcela com convicção.
- Ainda bem! - Responde o biohacker.
O sol começa a desaparecer entre as nuvens distantes, e Samuel aperta o passo, abrindo caminho entre os transeuntes e apressando o grupo:
- Vamos logo, pessoal, ainda tenho que liberar nossa entrada na pousada e voltar para a garagem.
- Voltar? Agora? Mas para quê? - Inquere Thiago.
- Tenho que acompanhar o desembarque de algumas cargas, não confio nesse povo daqui! Olha, é ali, chegamos!
Samuel aponta para um edifício de dois andares, com muitas janelas em ambos e uma porta de contornos arredondados. Mais de perto, eles notam que a estrutura também é um grande bloco de granito, como todas as outras da cidade. A porta e as janelas foram esculpidas na pedra, porém, acabamentos caprichosos foram feitos. De repente, uma sirene ecoa pela rua.
- O que é isso? Toque de recolher?
- Não, Davi, é só o aviso das seis horas da tarde. Significa que os portões da cidade serão fechados. Ninguém mais entra ou sai de Nova Esperança. - Responde Samuel.
- Mas e aquela fila imensa lá fora?.
- Vai ficar lá, moreninha. Os soldados vão entrar na cidade, mas o pessoal sabe se proteger, se tiverem problemas vão se dar bem.
- E que tipo de problema pode acontecer? - Questiona Bel, curiosa.
- Querida, estamos na Terra Maldita! Tudo pode acontecer ! Uma cidade desse tamanho sempre atrai muita atenção, tem comida aqui, afinal, e lá fora está cheio de animais estranhos e famintos, mutantes, bandoleiros... Enfim, todo tipo de criatura sem boas intenções.
- Ainda bem que estamos aqui dentro, dos males o menor! - Diz Davi, sorrindo para Bel.
Duas horas depois eles estão alojados na pousada. Samuel reservou apenas dois quartos, um para ele e outro para o restante do grupo, o que não agradou nem um pouco as meninas. Após checarem as camas, Thiago, Bel, Marcela e Davi se reúnem no salão principal para um suposto jantar. Eles estão sentados em poltronas confortáveis, olhando para as paredes do interior do prédio, que foram tratadas esteticamente. Alheio a presença dos jovens forasteiros, um recepcionista trajado em roupas locais opera um terminal de computador arcaico.
- Ainda bem que pelo menos tem camas para todo mundo. - Diz Thiago, tentando quebrar o silêncio.
- Olha, pensando pelo lado positivo, ainda bem que o Samuel não vai dormir com a gente! Ele deve...
Marcela se cala ao ver o piloto entrar no recinto, acompanhando por Maestro. Samuel olha divertido para a jovem engenheira.
- Tava falando de min, né, loirinha? Olha, eu tenho certas necessidades que vocês jovens nunca vão entender, por isso preciso de um quarto só para mim! - Ele ri de maneira maliciosa.
- Não queremos saber os detalhes da sua vida louca, Samuel. - Diz Davi. - Estamos todos morrendo de fome! Cadê o jantar?
- Jantar? Não tem comida aqui, rapaz. Isso é só uma pousada, só para passarmos a noite, sacou?
- Então nós vamos comer o quê?
Samuel se volta para Bel, intrigado.
- E desde quando você precisar comer? Achei que você fosse uma...
- Ela precisa tanto quanto todos nós, Samuel. - Interrompe Maestro, atento ao recepcionista que por um momento olhou com interesse para Bel.
- Certo. Seguinte, eu vou voltar ao Lobo, no caminho, deixo vocês numa pracinha aqui perto onde eles vendem as delícias locais, não vão se arrepender!
- Posso imaginar o cardápio: Rato do Deserto Flambado, Sanduíche de Verme de Areia, Costela de Mutante com molho madeira...
- Nossa, Davi, como você adivinhou? Acho que você já visitou Nova Esperança antes, hein? - Samuel abre um sorriso e pisca para Davi, que se afasta.
- É melhor irmos, ou vai ficar muito tarde. - Diz Maestro, obtendo a concordância de todos.
A praça está lotada. Ela é ampla e no formato de um círculo, com os carrinhos de comida dispostos na borda enquanto a parte de dentro foi reservada para as mesas. A maioria das pessoas são nativos, porém alguns forasteiros em trajes típicos das cidades-estado trafegam aqui e ali. O clima é bom, quase de festa. Famílias desfilam de mãos dadas e poucos guardas circulam sem pressa, não parecem portar armas.
Após examinarem cada carrinho, o grupo encontra uma mesa vazia e a ocupa. A mesa é retangular e possui apenas dois grandes bancos. Bel, Thiago e Marcela se sentem em um enquanto Maestro e Davi se sentam no outro.
- Gente, só tem comida com legumes ou frutas, cadê as proteínas? Cadê a carne? - Protesta Marcela.
- Não, cara. Naquele carrinho amarelo eu juro que vi uns espetinhos, acho que são de lagarto ou coisa do tipo. - Responde Davi.
- Lagarto? Esquece - Marcela faz uma careta. - Vou naquele ali, que tem aquelas coisas que lembram batatas assadas.
- É! Eu gostei do cheiro delas! Vou lá também! - Diz Bel, entusiasmada.
- E vocês, meninos, o que vão comer? - Pergunta Marcela, se levantando.
- Vão lá comprar a comida de vocês, eu espero aqui e fico de olho. - Responde Maestro, dando para Marcela um punhado de moedas cobreadas.
- Eu também vou ficar aqui, ainda não me decidi, tô entre o lagarto no espeto e aquelas sopas do primeiro carrinho - Diz Davi, olhando para um grupo de nativas que passa ao lado da mesa.
- Vou lá com as meninas! - Diz Thiago, se levantando.
- Ok. Fiquem atentos, ao menor sinal de algo estranho voltem para a pousada, compreenderam? Bel, você já escaneou a área? Achou algum outro CND?
- Não, Maestro, não tem nada, acho que estamos seguros. Ei, você quer alguma coisa? Uma 'batata' talvez? - Ela sorri. Davi fecha a cara.
- Muito obrigado - Maestro sorri de volta -, por favor traga para mim o mesmo que você escolher para você.
- Pode deixar!
Bel, Marcela e Thiago se dirigem para um carrinho com a pintura desgastada, onde uma senhora de idade serve pratinhos cheios de tubérculos assados envoltos em diferentes molhos. As pessoas fazem fila para comprar, tornando aquele um dos lanches mais disputados.
A movimentação de pessoas na praça aumenta, tornando impossível para Maestro e Davi observarem o trio, que some na multidão.
- Eu vou até eles, Davi. Fique aqui na mesa.
Já na fila, Thiago e Marcela se abraçam, trocando beijos comportados. A engenheira interrompe o ritual sorrindo para Bel.
- Ei, diz pra gente, é o Maestro?
Bel cora.
- Maestro!? O que tem ele? - Ela responde, revirando os olhos.
- Você pode processar trilhões de terabytes em um microssegundo, amiga, mas não consegue esconder os seus sentimentos! - Diz Marcela, divertida.
- Olha! Tô vendo um sorrisinho aí! - Diz Thiago olhando para Bel.
Subitamente, um homem de meia idade e de feições indianas se aproxima dos três.
- Com licença, a senhorita é Bel Yagami?
Bel fica pálida, Thiago larga Marcela a coloca a mão no cabo da pistola que leva escondida por de baixo da camisa. Marcela estanca.
Bel sente o cabo da arma pressionando suas costas.
- Vire-se, quero olhar bem nos seus olhos. - Diz o homem.
Ela obedece, ficando de frente para o indiano.
- Minha nossa! A semelhança é incrível!
- Semelhança?Como assim? O que você quer? - Questiona Bel, tremendo.
O homem olha rapidamente para Thiago, em seguida ergue um braço em um gesto rápido, então, um grupo de nativos se aproxima e os rodeia, quebrando a fila e afastando as outras pessoas.
- Largue a arma, rapaz, ou você morre.
"Bel, estou vendo uma movimentação suspeita, estou indo! Thiago, não faça nada até eu chegar aí. "
"Maestro, eles nos cercaram! Eu tenho que agir!"
"Não, Thiago, espere!"
Percebendo os movimentos do jovem ruivo, o indiano empurra Bel para o lado, onde um dos homens que cercaram o grupo a segura, ele mira no peito do jovem e então puxa o gatilho; o disparo não faz nenhum barulho, Marcela avança na direção do atirador, mas é contida por outro capanga.
Thiago sente o impacto no peito, sua visão parece congelar e a última coisa que vê é a namorada sendo dominada por dois homens vestindo túnicas cinza. Os sons ficam abafados, a as imagens ficam em câmera lenta, e uma dor incomensúravel se alastra por seu peito; sua respiração falha, então ele desaba no chão, a pistola cai ao lado, quicando nas padras. O terror invade seu corpo, em segundos, lembranças de sua pipocam na memória. Então, no meio do caos de sentimentos, a voz de Bel se sobrepõe: "Thiago, não tema, fique comigo! Por favor, desative todos os seus firewalls, abra o seu CND para min! Eu vou..."
O jovem hacker usa as últimas forças para se manter consciente, então vê o corpo de Bel caindo próximo ao seu, revelando a face do indiano, de pistola em punho, os olhos curvados, um leve sorriso se formando em seu rosto enquanto Bel se choca contra o chão.
- Isso foi por Dianna. A justiça, enfim, foi feita.
Thiago ouve as palavras proferidas pelo homem, então, lentamente, sua visão começa a esbranquecer e ele sente o sengue pulsando para fora do corpo, saindo pelo buraco no peito, escorrendo por sua boca. Os gritos de Marcela vão sumindo, ele tenta olhar para ela, mas só consegue ver o rosto de Bel, ela soluça e também expele sangue. Ao longe, as mechas loiras de Marcela vão desaparecendo em meio ao grupo de homens. Ele fecha os olhos, tenta pronunciar o nome da namorada, em vão, então não sente mais nada.
O indiano se aproxima do corpo de Bel, ele se abaixa rapidamente e coloca dois dedos na jugular dela. Não sente nada.
- Seja lá o que você for, está morta.
Então ele se levanta e se vira para alguns homens que o estão observando.
- Segurem o deletador até eu sair da praça.
Os homens assentem com a cabeça e então se embrenham na multidão.
Os gritos de Maestro são ouvidos por toda a praça, e vários guardas se dirigem para ele, mas um grupo de homens em túnicas cinzas cercam o deletador e o derrubam, para então sumirem de vista rapidamente. Davi tentar chegar atá Maestro, mas a multidão, assustada pelos homens de túnicas cinza, se agita e começa a se dispersar caoticamente, bloqueando o caminho do jovem biohacker; vários carrinhos são derrubados e logo uma guarnição aparece, tentando restabelecer a ordem.
Já distante dali, na entrada de um beco, Raji observa o tumulto com atenção, então se volta para dois homens que seguram Marcela, que está desacordada.
- Levem-na para meu veículo. Encontro vocês em trinta minutos.
O indiano dá alguns passos em direção ao meio da rua, então saca uma arma com um longo cano, apontando-a para cima. Dispara. Um projétil sobe aos céus silencioso, então explode produzindo uma explosão multi-colorida e estrondosa.
Centenas de guardas surgem pelas ruas correndo em direção à praça, ao mesmo tempo, Raji segue no sentido oposto, desaparecendo na noite.
https://www.facebook.com/engenhariareversalivroMarcela desce para o compartimento de passageiros, trazendo duas bebidas. Encontra Thiago, que está com a poltrona reclinada ao máximo, confortável, mas muito longe do que uma cama de verdade pode oferecer.
- Tá aqui. Era o último de laranja. Você vai ter que se contentar com uva a partir de agora.
Thiago devolve um sorriso sincero, com os olhos brilhando. A loira se aproxima e beija os lábios do jovem, com delicadeza; então ela se senta na poltrona ao lado, observando o rapaz de um jeito curioso.
- Eu me perguntava quando você iria tomar a iniciativa. - Diz ela.
- Ah! Se dependesse dele, nunca! - Davi proclama do outro lado da sala, com um sorriso debochado.
- É lógico que eu iria! Só estava esperando o momento certo. - responde Thiago com um olhar incisivo para Davi.
- Mas que bobeira! As vezes vocês parecem duas crianças.
- Menos, loirinha. Na verdade eu e o Thiagão estamos desenvolvendo uma relação de irmãos, entende? Ele é o caçula, e eu, como o mais velho e experiente, dou todas as orientações!
Marcela ri, então se volta para o biohacker:
- Eu acho que você pegou sol de mais na cabeça!
- Ou andou bebendo muito aquele combustível de trator que o Samuel chama de vodca especial... - Complementa Thiago, se espreguiçando na poltrona. Marcela olha para ele, concordando e rindo.
- Ha ha, vocês são hilários, já pensaram em ganhar a vida num palco? Contando piadinhas? - Responde Davi, cético.
- Só se você for com a gente! Afinal, você é de longe o mais talentoso em falar besteiras!- Marcela pisca para ele.
- Marcela, quer saber de uma coisa?
- Diga, sou só ouvidos!
Davi fecha a cara e se volta para o teclado no painel a sua frente, ficando de costas para os dois.
- Deixa prá lá. Não vale a pena.
- Também acho! Pela primeira vez concordo com você, Davi! - Responde a loira com um sorriso de satisfação.
- Ei, pessoal! - Grita Thiago, se levantando da poltrona. - Olhem lá! Nos monitores!
- Caraca, são árvores? - Questiona Davi, assombrado.
- Não só árvores! Dá um zoom ali! - Marcela aponta para uma região dentro da tela.
Thiago pula para o console de comando e amplia o zoom ótico das câmeras, que passam a exibir um vasto campo cheio de plantas de folhas amarelas, e, entre elas, centenas de pessoas usando ferramentas estranhas enchem caçambas alaranjadas com ramos recém colhidos.
- Não acredito! É uma plantação! E eles estão fazendo a colheita!
- Eles estão fazendo o quê? - Questiona Marcela, acompanhada pelo olhar curioso de Davi.
- Uma colheita! Antigamente, as pessoas plantavam na terra, então, depois de um tempo, era preciso pegar as frutas, os cereais, os legumes, esse processo era chamado de colheita!
- Na terra? Quer dizer que eles não tinham fazendas hidropônicas? Como vão garantir que essas plantas não estão contaminadas?
- Bom, sobre isso eu não faço a menor ideia, mas com certeza naquele tempo não haviam tantas indústrias envenenando o solo... enfim, acho que estamos nos aproximando do Brasil!
- Não é o Brasil, ainda. - Responde Bel de súbito, entrando no compartimento e atraindo os olhares.
- Então que lugar é esse? - Pergunta Davi
- Nova Esperança, uma cidade livre.
- Nunca ouvi falar!
Thiago se aproxima de Bel, ficando entre ela e Davi, então ele sorri e olha com gratidão para a biocomputador.
- Muito obrigado pelo que você fez por mim, Bel; você salvou a minha vida!
Marcela se junta ao namorado.
- Muito obrigada, mesmo! Sem você, estaríamos todos nas mãos da VNR agora.
- Que isso. Eu só fiz o que tinha que ser feito.
- Você é muito modesta! - Responde Marcela.
Bel devolve um sorriso radiante.
- Não fiz mais do que obrigação, aposto que vocês fariam o mesmo por mim!
- Pode apostar, com toda certeza! - Responde Thiago.
- Mas que diabo de lugar é essa, Nova Esperança? Isso não tá em nenhum mapa! - Davi franze a testa.
- É uma cidade livre! - Maestro entra no compartimento - Significa que nenhuma corporação ou país tem jurisdição sobre ela. - ele se aproxima de um console e mexe em alguns botões - Vejam!
- Caramba, aquilo é uma muralha? - Pergunta Thiago, boquiaberto, apontado para o monitor acima do console de Maestro.
A imagem exibe uma extensa fortificação feita com grandes blocos de granito, sobre a qual, separados por algumas dezenas de metros, grandes canhões vigiam os céus. Maestro dá um zoom, exibindo guardas fortemente armados patrulhando ao longo da fortificação.
- Vamos lá pra cima, vocês precisam ver isso com seus próprios olhos. - Maestro chama o grupo.
Rapidamente eles sobem a escada em caracol, chegando ao bar panorâmico.
- Samuel, pode abrir o bar. - Diz Maestro através de seu comunicador interno.
- Como assim abrir o bar? - Questiona Marcela, acompanhada pelos olhares dos outros.
- Ainda tenho alguns segredinhos para revelar, loirinha! - Responde Samuel através dos alto-falantes.
Uma engrenagem estala e logo os painéis de metal que formam as paredes do bar começam a descer, entrando na carcaça do Lobo, com exceção da parte de trás da bancada, que permanece imóvel.
- Rápido, peguem as cadeiras e coloquem ali atrás - Pede Maestro, apontando para a bancada.
Então as mesas também começam a descer, e logo todo o bar panorâmico está completamente aberto. O vento os atinge, fazendo os cabelos de Bel e de Marcela se agitarem. Maravilhados, eles observam a vasta plantação que se estende ao longo da muralha branca. Centenas de agricultores trabalham nos campos, seguidos por um exército dos pequenos carrinhos de caçamba laranja.
Eles podem ver que o Lobo do Deserto está em uma fila que se dirige para um imenso portão escavado em um bloco de granito ainda maior. Ao lado deles existe outra fila, mas essa seguindo em sentindo contrário, saindo da cidade. Os veículos são todos rústicos, muito semelhantes aos utilizados pela Falange, porém, existem muitos caminhões repletos de expurgados, e outros tantos cheios de carga. Veículos armados com metralhadoras estão posicionados em vários pontos ao longo da estrada, alertas para qualquer movimentação estranha. Os guardas se destacam: eles usam capacetes verdes que cobrem o rosto por completo e roupas de mesma cor, mas é o símbolo que todos trazem estampado no peito que atrai os olhares dos recém chegados: um desenho do perfil de uma ave, em cor branca. É o mesmo desenho pintado acima do grande portão, porém, ali ele está muito mais detalhado do que nos trajes dos homens armados. Intrigada, Bel examina seu banco de dados e em instantes descobre que se trata de uma antiga ave, já extinta, chamada de "Gavião-real".
- Como eles conseguiram construir uma muralha desse tamanho bem no meio do nada? E essas plantações todas? Como isso é possível? - Inquere Thiago, impressionado.
- E como a GFA permite que um lugar como esse exista? - Complementa Marcela.
- Bem, a GFA e todas as suas mega corporações não dão a mínima para Nova Esperança, eles não tem nenhum poder ou influência aqui, inclusive, qualquer veículo que se aproximar da cidade sem um código de acesso é intimado a dar meia volta, e se isso não acontecer, aqueles canhões ali reforçam a mensagem - responde Maestro.
- Então, se ficarmos aqui, estaremos seguros! Amanda jamais se atreveria a nos atacar dentro da cidade!
Davi e Marcela se empolgam e concordam com Thiago, mas Maestro se mantém sério.
- Não é bem assim. Nova Esperança é uma cidade livre, mas, como você pode ver, são muito atrasados tecnologicamente. Aqueles canhões são da época do revolução, os armamentos dos soldados são antiquados, não conseguiriam penetrar uma armadura padrão da VNR.
- Mas, Maestro, o Lobo do Deserto também é do tempo da revolução, e ele acabou com a Falange! - Intervém Davi.
- Não é a mesma coisa. O Lobo foi aperfeiçoado, foi restaurado. Entendam, uma GC poderia facilmente infiltrar um agente ou um exército na cidade, eles dominariam Nova Esperança em apenas algumas horas. A cidade não tem defesas eletrônicas, usa sistemas de computação arcaicos, não existe a menor sombra de biotecnologia, CND's, nada disso. Estamos mais seguros dentro do Lobo do que dentro dessas muralhas, podem acreditar.
A resposta de Maestro atinge os três jovens como uma lâmina congelada, encerrando prematuramente a vida de qualquer esperança que tenha nascido nos últimos minutos.
A fila de veículos parece acelerar, e rapidamente o Lobo se aproxima do grande portão. Debaixo da estrutura eles percebem que a rocha é bem mais larga do que parecia, e o portão revela ser a entrada de um túnel. Uma rápida escuridão é logo suplantada por luzes amarelas que emanam do teto.
Alguns minutos se passam, então a claridade do dia anuncia que eles estão entrando efetivamente em Nova Esperança. As duas pistas se dividem e cada uma se curva para um lado. As curvas continuam em um declive, que logo começa a ficar mais inclinado e força os veículos a diminuírem a velocidade.
- É melhor entrarmos! Não vamos conseguir ficar em pé! - Diz Maestro.
Porém, antes de descerem para o compartimento de passageiros, os jovens percebem, impressionados, que agora eles estão entrando em uma espécie de cratera, que se prolonga por dezenas de metros terra a dentro, e nas paredes da mesma, andares com entradas amplas e retangulares recebem os veículos da pista em que o Lobo está, enquanto do lado oposto, para onde a outra pista corre, outros veículos saem das garagens carregados de materiais e de expurgados.
- Estamos chegando na área de desembarque, vamos passar essa noite em Nova Esperança e amanhã já pegamos a estrada de novo, aproveitem para dormir em uma cama de verdade! - Diz Samuel pelos alto-falantes.
O Lobo adentra a garagem de número 177-G; o pático interno é amplo, com vários cubículos onde os veículos estacionam, mecânicos, trabalhadores e guardas armados estão por toda parte. O grande striker manobra e entra de ré em sua vaga, enfim, desligando os motores.
Após sair do Lobo, o grupo segue por um caminho demarcado no piso onde setas amarelas os levam para uma porta bem no final do pátio. A porta dá para um extenso e largo corredor, onde uma multidão de expurgados e trabalhadores caminha para a mesma direção.
- Agora é só seguir o fluxo, moçada, bora! - Diz Samuel, entusiasmado.
- Pessoal, fiquem atentos. Bel, ao menor sinal de atividade biodigital me avise, ok? - Pede Maestro.
Bel assente e o grupo começa a andar, entrando no meio da multidão. Dez minutos depois eles chegam a um grande salão, onde as pessoas embarcam em monotrilhos. Nas paredes, em várias plataformas, guardas armados observam a tudo e a todos. Eles pegam um monotrilho e algum tempo depois chegam a uma estação, a saída da mesma é uma larga e longa escadaria, que verte para cima. Na estação os guardas são diferentes, não usam mais capacetes e os trajes são azuis e sem proteção, como policiais de rua. O grupo sobe pela escadaria, Maestro e Thiago vão na frente enquanto Davi e Samuel seguem pela retaguarda, Bel e Marcela estão entre as duas duplas.
A medida que se aproximam da saída a luz natural aumenta, ofuscando a iluminação artificial da estação. Juntamente com centenas de pessoas eles chegam na superfície, então param e observam com curiosidade o cenário que se apresenta: muitos prédios de poucos andares, todos quadrados e brancos com janelas retangulares e rústicas, cada um parece ser uma pedra de granito que foi trabalhada inteiramente para ser habitável. Os espaços entre os edifícios são amplos, e um mundaréu de gente circula por todos os lados. Nenhum tipo de veículo é avistado, exceto as bicicletas, centenas delas dividem o espaço com as pessoas. Todos os prédios são mais ou menos da mesma altura, alguns menores, outros um pouco maiores, e o chão é composto por paralelepípedos, milhares deles.
A maioria dos habitantes usa roupas simples, túnicas, mantas, panos enrolados pelo corpo. Muitos são expurgados, identificáveis pelas vestes sujas e cabelos desgrenhados, mas todos que usam túnicas as possuem bem limpas, cabelos bem tratados e uma postura diferente, um tanto altiva, Bel supõe que estes são os nativos do lugar. Entretanto, pessoas com vestes semelhantes as do grupo circulam no meio do povo, em um número muito pequeno, mas que acabam se destacando na multidão, "passageiros de outros strikers", ela presume.
- Eu nunca imaginei que um lugar como esse existisse, uma metrópole livre no meio do nada! - Diz Marcela, arregalando os olhos.
- Metrópole? Tá maluca? Isso aqui está mais para uma grande zona de exclusão! - Responde sarcasticamente Davi.
- Favela ou não, eu só quero que as camas sejam bem macias! - Diz Thiago, recebendo o apoio de Marcela.
- Isso aqui está longe de ser uma zona de exclusão, Davi, certamente você nunca pisou em uma. - Diz Marcela com convicção.
- Ainda bem! - Responde o biohacker.
O sol começa a desaparecer entre as nuvens distantes, e Samuel aperta o passo, abrindo caminho entre os transeuntes e apressando o grupo:
- Vamos logo, pessoal, ainda tenho que liberar nossa entrada na pousada e voltar para a garagem.
- Voltar? Agora? Mas para quê? - Inquere Thiago.
- Tenho que acompanhar o desembarque de algumas cargas, não confio nesse povo daqui! Olha, é ali, chegamos!
Samuel aponta para um edifício de dois andares, com muitas janelas em ambos e uma porta de contornos arredondados. Mais de perto, eles notam que a estrutura também é um grande bloco de granito, como todas as outras da cidade. A porta e as janelas foram esculpidas na pedra, porém, acabamentos caprichosos foram feitos. De repente, uma sirene ecoa pela rua.
- O que é isso? Toque de recolher?
- Não, Davi, é só o aviso das seis horas da tarde. Significa que os portões da cidade serão fechados. Ninguém mais entra ou sai de Nova Esperança. - Responde Samuel.
- Mas e aquela fila imensa lá fora?.
- Vai ficar lá, moreninha. Os soldados vão entrar na cidade, mas o pessoal sabe se proteger, se tiverem problemas vão se dar bem.
- E que tipo de problema pode acontecer? - Questiona Bel, curiosa.
- Querida, estamos na Terra Maldita! Tudo pode acontecer ! Uma cidade desse tamanho sempre atrai muita atenção, tem comida aqui, afinal, e lá fora está cheio de animais estranhos e famintos, mutantes, bandoleiros... Enfim, todo tipo de criatura sem boas intenções.
- Ainda bem que estamos aqui dentro, dos males o menor! - Diz Davi, sorrindo para Bel.
Duas horas depois eles estão alojados na pousada. Samuel reservou apenas dois quartos, um para ele e outro para o restante do grupo, o que não agradou nem um pouco as meninas. Após checarem as camas, Thiago, Bel, Marcela e Davi se reúnem no salão principal para um suposto jantar. Eles estão sentados em poltronas confortáveis, olhando para as paredes do interior do prédio, que foram tratadas esteticamente. Alheio a presença dos jovens forasteiros, um recepcionista trajado em roupas locais opera um terminal de computador arcaico.
- Ainda bem que pelo menos tem camas para todo mundo. - Diz Thiago, tentando quebrar o silêncio.
- Olha, pensando pelo lado positivo, ainda bem que o Samuel não vai dormir com a gente! Ele deve...
Marcela se cala ao ver o piloto entrar no recinto, acompanhando por Maestro. Samuel olha divertido para a jovem engenheira.
- Tava falando de min, né, loirinha? Olha, eu tenho certas necessidades que vocês jovens nunca vão entender, por isso preciso de um quarto só para mim! - Ele ri de maneira maliciosa.
- Não queremos saber os detalhes da sua vida louca, Samuel. - Diz Davi. - Estamos todos morrendo de fome! Cadê o jantar?
- Jantar? Não tem comida aqui, rapaz. Isso é só uma pousada, só para passarmos a noite, sacou?
- Então nós vamos comer o quê?
Samuel se volta para Bel, intrigado.
- E desde quando você precisar comer? Achei que você fosse uma...
- Ela precisa tanto quanto todos nós, Samuel. - Interrompe Maestro, atento ao recepcionista que por um momento olhou com interesse para Bel.
- Certo. Seguinte, eu vou voltar ao Lobo, no caminho, deixo vocês numa pracinha aqui perto onde eles vendem as delícias locais, não vão se arrepender!
- Posso imaginar o cardápio: Rato do Deserto Flambado, Sanduíche de Verme de Areia, Costela de Mutante com molho madeira...
- Nossa, Davi, como você adivinhou? Acho que você já visitou Nova Esperança antes, hein? - Samuel abre um sorriso e pisca para Davi, que se afasta.
- É melhor irmos, ou vai ficar muito tarde. - Diz Maestro, obtendo a concordância de todos.
A praça está lotada. Ela é ampla e no formato de um círculo, com os carrinhos de comida dispostos na borda enquanto a parte de dentro foi reservada para as mesas. A maioria das pessoas são nativos, porém alguns forasteiros em trajes típicos das cidades-estado trafegam aqui e ali. O clima é bom, quase de festa. Famílias desfilam de mãos dadas e poucos guardas circulam sem pressa, não parecem portar armas.
Após examinarem cada carrinho, o grupo encontra uma mesa vazia e a ocupa. A mesa é retangular e possui apenas dois grandes bancos. Bel, Thiago e Marcela se sentem em um enquanto Maestro e Davi se sentam no outro.
- Gente, só tem comida com legumes ou frutas, cadê as proteínas? Cadê a carne? - Protesta Marcela.
- Não, cara. Naquele carrinho amarelo eu juro que vi uns espetinhos, acho que são de lagarto ou coisa do tipo. - Responde Davi.
- Lagarto? Esquece - Marcela faz uma careta. - Vou naquele ali, que tem aquelas coisas que lembram batatas assadas.
- É! Eu gostei do cheiro delas! Vou lá também! - Diz Bel, entusiasmada.
- E vocês, meninos, o que vão comer? - Pergunta Marcela, se levantando.
- Vão lá comprar a comida de vocês, eu espero aqui e fico de olho. - Responde Maestro, dando para Marcela um punhado de moedas cobreadas.
- Eu também vou ficar aqui, ainda não me decidi, tô entre o lagarto no espeto e aquelas sopas do primeiro carrinho - Diz Davi, olhando para um grupo de nativas que passa ao lado da mesa.
- Vou lá com as meninas! - Diz Thiago, se levantando.
- Ok. Fiquem atentos, ao menor sinal de algo estranho voltem para a pousada, compreenderam? Bel, você já escaneou a área? Achou algum outro CND?
- Não, Maestro, não tem nada, acho que estamos seguros. Ei, você quer alguma coisa? Uma 'batata' talvez? - Ela sorri. Davi fecha a cara.
- Muito obrigado - Maestro sorri de volta -, por favor traga para mim o mesmo que você escolher para você.
- Pode deixar!
Bel, Marcela e Thiago se dirigem para um carrinho com a pintura desgastada, onde uma senhora de idade serve pratinhos cheios de tubérculos assados envoltos em diferentes molhos. As pessoas fazem fila para comprar, tornando aquele um dos lanches mais disputados.
A movimentação de pessoas na praça aumenta, tornando impossível para Maestro e Davi observarem o trio, que some na multidão.
- Eu vou até eles, Davi. Fique aqui na mesa.
Já na fila, Thiago e Marcela se abraçam, trocando beijos comportados. A engenheira interrompe o ritual sorrindo para Bel.
- Ei, diz pra gente, é o Maestro?
Bel cora.
- Maestro!? O que tem ele? - Ela responde, revirando os olhos.
- Você pode processar trilhões de terabytes em um microssegundo, amiga, mas não consegue esconder os seus sentimentos! - Diz Marcela, divertida.
- Olha! Tô vendo um sorrisinho aí! - Diz Thiago olhando para Bel.
Subitamente, um homem de meia idade e de feições indianas se aproxima dos três.
- Com licença, a senhorita é Bel Yagami?
Bel fica pálida, Thiago larga Marcela a coloca a mão no cabo da pistola que leva escondida por de baixo da camisa. Marcela estanca.
Bel sente o cabo da arma pressionando suas costas.
- Vire-se, quero olhar bem nos seus olhos. - Diz o homem.
Ela obedece, ficando de frente para o indiano.
- Minha nossa! A semelhança é incrível!
- Semelhança?Como assim? O que você quer? - Questiona Bel, tremendo.
O homem olha rapidamente para Thiago, em seguida ergue um braço em um gesto rápido, então, um grupo de nativos se aproxima e os rodeia, quebrando a fila e afastando as outras pessoas.
- Largue a arma, rapaz, ou você morre.
"Bel, estou vendo uma movimentação suspeita, estou indo! Thiago, não faça nada até eu chegar aí. "
"Maestro, eles nos cercaram! Eu tenho que agir!"
"Não, Thiago, espere!"
Percebendo os movimentos do jovem ruivo, o indiano empurra Bel para o lado, onde um dos homens que cercaram o grupo a segura, ele mira no peito do jovem e então puxa o gatilho; o disparo não faz nenhum barulho, Marcela avança na direção do atirador, mas é contida por outro capanga.
Thiago sente o impacto no peito, sua visão parece congelar e a última coisa que vê é a namorada sendo dominada por dois homens vestindo túnicas cinza. Os sons ficam abafados, a as imagens ficam em câmera lenta, e uma dor incomensúravel se alastra por seu peito; sua respiração falha, então ele desaba no chão, a pistola cai ao lado, quicando nas padras. O terror invade seu corpo, em segundos, lembranças de sua pipocam na memória. Então, no meio do caos de sentimentos, a voz de Bel se sobrepõe: "Thiago, não tema, fique comigo! Por favor, desative todos os seus firewalls, abra o seu CND para min! Eu vou..."
O jovem hacker usa as últimas forças para se manter consciente, então vê o corpo de Bel caindo próximo ao seu, revelando a face do indiano, de pistola em punho, os olhos curvados, um leve sorriso se formando em seu rosto enquanto Bel se choca contra o chão.
- Isso foi por Dianna. A justiça, enfim, foi feita.
Thiago ouve as palavras proferidas pelo homem, então, lentamente, sua visão começa a esbranquecer e ele sente o sengue pulsando para fora do corpo, saindo pelo buraco no peito, escorrendo por sua boca. Os gritos de Marcela vão sumindo, ele tenta olhar para ela, mas só consegue ver o rosto de Bel, ela soluça e também expele sangue. Ao longe, as mechas loiras de Marcela vão desaparecendo em meio ao grupo de homens. Ele fecha os olhos, tenta pronunciar o nome da namorada, em vão, então não sente mais nada.
O indiano se aproxima do corpo de Bel, ele se abaixa rapidamente e coloca dois dedos na jugular dela. Não sente nada.
- Seja lá o que você for, está morta.
Então ele se levanta e se vira para alguns homens que o estão observando.
- Segurem o deletador até eu sair da praça.
Os homens assentem com a cabeça e então se embrenham na multidão.
Os gritos de Maestro são ouvidos por toda a praça, e vários guardas se dirigem para ele, mas um grupo de homens em túnicas cinzas cercam o deletador e o derrubam, para então sumirem de vista rapidamente. Davi tentar chegar atá Maestro, mas a multidão, assustada pelos homens de túnicas cinza, se agita e começa a se dispersar caoticamente, bloqueando o caminho do jovem biohacker; vários carrinhos são derrubados e logo uma guarnição aparece, tentando restabelecer a ordem.
Já distante dali, na entrada de um beco, Raji observa o tumulto com atenção, então se volta para dois homens que seguram Marcela, que está desacordada.
- Levem-na para meu veículo. Encontro vocês em trinta minutos.
O indiano dá alguns passos em direção ao meio da rua, então saca uma arma com um longo cano, apontando-a para cima. Dispara. Um projétil sobe aos céus silencioso, então explode produzindo uma explosão multi-colorida e estrondosa.
Centenas de guardas surgem pelas ruas correndo em direção à praça, ao mesmo tempo, Raji segue no sentido oposto, desaparecendo na noite.
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André Luis Almeida Barreto
Aspirante a escritor, inquieto por natureza, ainda tenho vontade de mudar o mundo ou pelo menos colocar um monte de gente para pensar. Viciado em livros, games, idéias loucas e sempre procurando coisas que desafiem minha imaginação.
Olá!!!
ResponderExcluirNunca li nenhum BOOKSERIE, mais não fica duvida de que esse foi muito bem escrito e elaborado, achei os personagens com uma total harmonia já tem mais um voto meu positivo, claro irei ter que ler os primeiros capítulos pra entender de verdade essa historia desde o começo, fiquei bem perdida por ser novata aqui no blog, mais com toda certeza que lerei todos os capítulos. Até mais!!!
Muito agradecido, Marília. E seja bem vinda ao blog!
ExcluirAndré, foi você que escreveu? Amei sua escrita, para um aspirante a escritor você está no caminho mais que certo. Como não acompanhei um BOOKSERIE, esse com certeza será o primeiro que terei esse privilégio. Mesmo não compreendo grande parte do que aconteceu, o enredo e personagens me pareceram bem interessantes.
ResponderExcluirContinue com sua escrita fluída e boa que você irá bem longe.
:)
ExcluirNicoli, fico muito feliz! Já tem muitos capítulos publicados, e será uma boa leitura, garanto!Abraços!
Sabe o que eu mais gosto nessa booksérie? Os diálogos! São tão naturais, frequentes e bem feitos... Gostaria de ter essa facilidade assim. Como de costume, adorei todo o capítulo, impecável.
ResponderExcluirUm abraço!
Parágrafos & Travessões
Obrigado, Eduarda! Vou te confessar uma coisa: eu escrevo e reescrevo os diálogos várias vezes...rs. E no final ainda não tão satisfeito, mas, se conseguiram passar essa impressão fico feliz! Abraços!
ExcluirNão é meu gênero preferido, mas a escrita é tão fluída que nem percebo o passar da leitura. Os personagens são bem construídos e os diálogos tornam a narrativa ainda mais interessante
ResponderExcluirValeu, Thaynara! Um abraço!
ExcluirOla, eu li essa bookserie, gostei bastante mas não entendi muito porque não comecei desde o inicio..mas a historia ela te envolve muito e te deixa com mas vontade de ler a continuação...espero que eu posso entender a historia..!
ResponderExcluirbeijos
Lilly, tem muitos capítulos já escritos, se quiser ler desde o começo, garanto que será bem divertido! Um abraço!
ExcluirAndré!
ResponderExcluirAté que enfim rolou beijo, hein?kkkkkkkk
Já estava achando que não teria nenhum relacionamento.
Menino! De onde tira esses termos: hidropônicas? Haja criatividade...Arrasou!
Parabéns!
Sei que tem em dicionário, mas trazer para a história foi bem interessante.
“Volta teu rosto sempre na direção do sol, e então, as sombras ficarão para trás.” (Sabedoria oriental)
cheirinhos
Rudy
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
TOP Comentarista de JANEIRO dos nacionais, livros + BRINDES e 3 ganhadores, participem!
Muito obrigado, Rudy. Tava mesmo na hora de rolar um romance, né? Mas vem coisa aí pela frente, rs, nem vou falar para deixar uma ansiedade boa...rs
ExcluirAbração!
Olá, achei a booksérie bem elaborada e com uma trama viciante. Ainda bem que tem bastante capítulos. Beijos.
ResponderExcluirSim, Alison, tem sim! Seria bem legal saber sua opinião sobre a bookserie!
ExcluirBeijos!
Nunca li nenhuma Book série, mais achei ela bem lega. Não gosto muito de ler nada que não esteja completo incluindo séries, mais acho um ótimo modo de conquistar leitores fieis!
ResponderExcluirBjs
Com certeza, Vivian! Beijos!
ExcluirOi, André!!
ResponderExcluirFinalmente vou ler essa book série do início!! Só li partes até agora, mas tenho gostado muito do que estou lendo!!
Beijoss
EBA!Fico feliz que tenha gostado!\o/ Lê e depois diz ae o que achou!
ExcluirBeijo!
André!
ResponderExcluirCada vez mais o book tem me conquistado viu...
Já anotei na listinha de desejados e espero conseguir ler logo!
Bjs e parabéns!
Aline, :)
Excluirfico muito grato,e muito obrigado! Bjs!
Veja bem: há muito tempo eu procuro algo interessante para ler. E somente agora encontrei essa sua narrativa maravilhosa? Pode acreditar que seu número de leitores vai aumentar. Uau, você me impressionou.
ResponderExcluirNossa, Carol, estou lisonjeado com o seu comentário, serio mesmo. :)
ExcluirExtremamente feliz aqui de saber que o resultado do trabalho está agragando tanto e trazendo novos leitores! Abraço!
Uau! Primeira vez que leio uma bookserie. Adorei! Muito bem escrita e os diálogos são bem naturais.
ResponderExcluirCom certeza irei procurar todos os capítulos para que entenda mais da história.
Parabéns!
Como sempre, adoro acompanhar seu bookserie, espero que consiga continuar tendo tempo de visitar o blog para poder acompanhar, ótima escrita e ótimo capítulo.
ResponderExcluirOlá...
ResponderExcluirQuanta criatividade... E que leitura deliciosa... Cheia de ação e agora com um toque de romance... Tudo de bom... Deixou realmente com um gostinho de quero mais...
Abraços...
Caramba cara quando eu olhei essa capa estava pensando que era de um livro já publicado e talz de tão linda. E quanto a sua estória é só elogios. Gosto do modo como é direto sem enrolar pra chegarem um ponto. De certa forma e lembrou até os livros do Pedro Bandeira hahah.
ResponderExcluirai meu Deus quanta reviravolta!!
ResponderExcluira cada cap sua história está mais empolgante!! eu estou amando !
adoro quando eu passo por aqui e tem um post bookserie =)
muito sucesso para você!
Adorei o capitulo. Os diálogos como sempre estão maravilhosos.
ResponderExcluirParabéns ;)