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17.1.17

Os Visitantes [Bernardo Kucinski]

Os Visitantes
Ed. Companhia Das Letras, 2016 - 96 páginas:
      O jornalista Bernardo Kucinski causou furor na cena literária brasileira com seu romance K – relato de uma busca, publicado em 2013. História de um pai em busca da filha que desapareceu durante a ditadura no Brasil, o romance angariou uma legião de fãs e foi aclamado como uma das grandes obras literárias daquele ano. A novela Os visitantes é uma continuação de K, e cada capítulo narra a visita de uma pessoa diferente que vai até o autor cobrar satisfações sobre o livro anterior. Ao fim, descobre-se também o destino trágico da irmã. Narrado com frieza e precisão, Os visitantes confirma o lugar de Bernardo Kucinski entre os grandes autores da literatura brasileira.

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Às vezes me pego pensando no que acontece após um sucesso literário. Que tipo de vida leva um escritor depois das noites de autógrafo, das resenhas e críticas ao livro. Pude matar um pouco a curiosidade com o excelente Os Visitantes, novo livro de Bernardo Kucinski, que retoma o tema do desaparecimento de sua irmã, a professora Ana Rosa Kucinski, durante a ditadura militar dos anos 70, agora sob novo enfoque: personagens saem de suas tocas e vêm reclamar com o escritor. O que parece, a princípio, desconfortável, logo dá pano pra manga para mais um livro.

No livro anterior, K. Relato de uma Busca (resenha aqui), o autor une elementos de ficção ao fato real do desaparecimento, contando o sofrimento de um pai em busca do paradeiro da filha. Já na novela Os Visitantes, agora vê desfilar, na calma sala de seu apartamento, novos personagens incomodados com algum trecho específico do livro. Usando a metaficção, Kucinski cria um jogo de pontos-de-vista em que convida o leitor a decifrar os limites do real e do imaginário, ao mesmo tempo em que sutilmente levanta questões sobre a estetização da maldade. Afinal, mais uma obra versando sobre os tempos duros e sofridos de nossa história. Quanto mais se cutuca uma ferida, mais ela sangra.

O narrador é o próprio autor, entediado e angustiado na solidão silenciosa pós-publicação do primeiro livro. Há dias espera uma resenha, uma crítica no jornal. Até que toca o interfone e se apresenta a primeira visitante:

"Ela disse: É sobre o holocausto, o senhor escritor escreveu o que os alemães registravam todas as pessoas que matavam, mas isso não é verdade! Só registravam os que eram separados para o trabalho forçado, e só em Auschwitz. A maioria ia direto para câmara de gás, os velhos, as crianças, os que pareciam fracos; imagine se iam registrar cada um, nem daria tempo, era um transporte depois do outro."

As visitas vão chegando, mas nada das esperadas menções ao livro. Atormentado pelos dias sem resposta, até nos sonhos ele é aterrorizado. Desta vez, seu próprio pai personifica uma culpa que carrega:

"Aqui assassinavam pessoas. Inventavam que eram atropeladas. Uma delas viu no jornal a notícia da própria morte. Porque você não colocou isso na sua novela? Não quis denunciar colegas de ofício? Ou não sabia? Claro que você sabia. Você falhou. Tinha acesso aos jornais ingleses, trabalhava na BBC de Londres e se calou. Em vez de denunciar as atrocidades da ditadura, você fazia entrevistas para as amarelinhas da Veja."

Um amigo que conhecia a professora, entre outras coisas, não aceita que o autor a tenha declarado feia. E tem sensibilidade para perceber os ecos do desaparecimento violento:

"(...) é interessante a forma como você elide a presença dela, embora tudo seja sobre ela e por causa dela; é como se sua ausência na narrativa correspondesse à sua supressão na vida real."

Já o crítico literário, que um dia foi colega no mesmo jornal, está com os nervos à flor da pele, até tenta se controlar, mas o tom da conversa é elevado:

"Quem é você para julgar? (...) Você nunca foi torturado, nem preso foi, pois eu vou te contar o que nunca contei a ninguém, nem à minha mulher. (...) Vai ouvir, sim, vai ouvir que deram choque elétrico no meu corpo todo, enfiaram um cabo de vassoura no meu **, só não me arrancaram as unhas porque não sabiam se iam ter que me soltar, enfiaram minha cabeça um monte de vezes num barril de água até eu quase me afogar."

Dói. Como a menção à tortura escandaliza! Apesar das tantas publicações a respeito, jamais nos acostumaremos a qualquer alusão à barbárie praticada naqueles dias sombrios.

Em algum momento há um encontro que suscita a ideia de desabafo do autor, cujo pai era um judeu polonês que fugiu para o Brasil para escapar dos horrores do nazismo:

"Em geral, os judeus foram indiferentes, como toda a sociedade brasileira; as entidades judaicas não apoiaram o golpe, ao contrário de muitas entidades católicas e dos empresários, mas também não o denunciaram, e assim se mantiveram no decorrer de toda a ditadura, até nos momentos mais pesados."

O torturador Fleury também foi bem representado entre as visitas inesperadas, quando um amigo manda um e-mail contando que conhecia a amante do cara. E que a impressão ao visitá-la, pouco depois da saída do temido delegado, foi das piores:

"Ele estava aqui pouco antes de você chegar; almoçamos e foi ele quem lavou a louça e as panelas. (...) Olhei para os pratos e as panelas lavados e me pareceu que escorria sangue, que tudo estava coberto de sangue."

Após ler todos os relatos, achando que já estava de bom tamanho ter acompanhado uma história de sofrimento e crueldade em K., seguida pelos novos vislumbres d’Os Visitantes, o autor deixou para o final o soco do nocaute. A entrevista que um agente da repressão no regime militar deu na tevê, muitos anos depois. É tão chocante que já nem importa o quanto de ficção se mescla à realidade, esta, por si só, mata um tanto de esperança que ainda resiste em mim:

"Os dois estavam nus e sem perfuração de bala. Não foram mortes por tiro, que são menos sofridas, foram mortes por tortura. O da professora tinha marcas roxas de espancamentos e outras marcas vermelhas, o do marido estava com as unhas arrancadas."

Respira. Pausa. Isso de fato aconteceu e é o registro sangrento e vergonhoso da nossa História.

Duro, revelador, indigesto no final. Assim como o anterior, necessário para compreender um pouco mais o que foi a ditadura no Brasil.

O livro K. saiu inicialmente pela editora Expressão Popular, em 2011. Depois foi reeditado pela extinta Cosac Naify, em 2014, e mais recentemente em 2016, pela Companhia das Letras. Na edição da Cosac, os dois primeiros visitantes aparecem como contos extras ao final do livro. Havia mencionado a falta que senti desse adendo na última edição. Só agora entendi que a editora preferiu uni-los a esta continuação.

Link do livro: https://www.skoob.com.br/livro/592387ED593514

Clique na capa para ler a resenha do livro anterior:


 Cortesia do Grupo Companhia das Letras
Manu Hitz
Cearense, fisioterapeuta e mãe. “Eu não tenho o hábito da leitura. Eu tenho a paixão da leitura. O livro sempre foi para mim uma fonte de encantamento. Eu leio com prazer. Leio com alegria.” Ariano Suassuna.
*Sua compra através dos links deste post geram comissão ao blog!

26 comentários em "Os Visitantes [Bernardo Kucinski]"

  1. Olá!!!!!!!
    É complicado falar de um assunto que choca a todos ate hoje os brasileiros, eu não tenho muito animo para ler o livro mais deve ser muito interessante por mais que seja triste seria bom conhecer como realmente funcionava.
    Até mais!!

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  2. Excelente! Manu. Embora não tenha lido "K. relato de uma busca" e como comentei contigo sobre a dificuldade que tenho com leituras que tratem do tema ditadura, achei a proposta do autor muito interessante, também tenho uma curiosidade danada em saber o que acontece pós publicação, ainda mais sobre um assunto tão indigesto. Dica anotada para oportunamente encarar um livro que trate do tema, com certeza começarei pelos de Kucinski.
    Obrigada pelas valiosas dicas. Beijo!

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  3. Manu, esse é o período histórico brasileiro em que mais sinto vergonha de pertencer a esse país. Os quotes que você separou fez arrepiar até minha alma, principalmente o último, não sei como um ser humano é capaz de fazer uma atrocidade dessas. Com certeza não conseguiria ler esse livro até o final, ele seria indigesto por mim.

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    Respostas
    1. Nicoli, estamos juntas no quesito vergonha. Compreendo sua dificuldade, é realmente duro. Mas eu tenho uma curiosidade incontrolável, o tema me puxa, apesar de pular alguma passagem sobre tortura, tb não aguento. Mas a parte histórica é irreversível pra mim. Obrigada pelo comentário!

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  4. Ola Manu...caramba, achei super legal a resenha porém arrepiante...nunca li nenhum livro relacionado ao Brasil mas esse me deixou ate com medo de ler...uma época meia assombrada...gostei bastante da sua resenha mas acho que não leria!!

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  5. Cara Manuh, “K” é um dos livros que ainda desejo muito ler, deixei isso claro em comentário à sua resenha sobre este livro. A resenha, em si mesma, eivada pela dor do desaparecimento de um filho, completada pelas palavras piedosas e dilacerantes de seu sentimento de leitora.
    Sempre quando me deparo com o final de uma leitura tão purgativa, fico imaginando como seria o pós-livro, o pós-acontecimento, corroboro sua curiosidade, pode me incluir. Está ali no primeiro livro toda a dor, mas haverá cura? O que diria o autor após tão desumana confissão? Como será sua vida depois de tudo isso? Percebo o quanto somos parecidos na ânsia pela informação que nunca foi dita.
    Sua busca nos trouxe “Os visitantes”, para tocar na ferida (cicatrizada?) mais uma vez. E outra vez o livro vem embalado pelas suas palavras objetivas e desconcertantes. Objetivas porque recortam trechos sem pudor para nos evidenciar um painel reconstruído da tortura através de perguntas, comparada à tortura da própria ditadura, à tortura de um escritor sem respostas. E desconcertantes porque refletem a dura missão de recolocar a angústia, a dor e a culpa como norte para uma nova discussão.
    Sua conclusão pela impossibilidade de alterar o que a realidade insiste em nos jogar na cara é frustrante, um passarinho engaiolado. Há quem diga que é possível banalizar a violência a tal ponto que a mesma passe despercebida, seria a “barbárie” inimputável propagada por um ser humano feito nós. Porém, quero acreditar que a cada trecho deste livro, a cada tortura realizada, a cada golpe invisível do poder obscuro do Estado, mais pessoas se indignem e que os nomes dos sádicos e covardes jamais sejam esquecidos.
    Não quero a tristeza ou a crueldade fazendo morada em meu coração, mas também não quero percebê-las se insinuando junto aos meus. O que dói em quem me é caro, dói em mim. Torço para que a violência infligida a qualquer pessoa, um dia, seja apenas história. É intolerável o comportamento selvagem e despótico de um torturador que vai deixando cacos de vida espalhados pelo chão.
    Contaminemos o mundo de esperança – podemos começar por sua bela resenha a nos abrir os olhos.

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  6. Manu!
    Deve ser um livro reflexivo em vários aspectos, não apenas o que acontece com um escritor após o sucesso de um livro, mas também sobre toda a repressão e tortura imposta na época da ditadura.
    Bom vem a mescla de fatos reais com ficção.
    “Sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância.” (Sócrates)
    cheirinhos
    Rudy
    http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
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  7. Oi Manu! Nossa! parece ser um livro original de certa forma, com uma abordagem bem interessante. Forte, parece ser bem forte tb! Que bom que vc foi uma boa experiência de leitura pra vc! Adorei a resenha!

    Bjs, Mi

    O que tem na nossa estante

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  8. Oi!
    Ainda não li nada do Bernardo Kucinski, mas seus livros parecem ser bem interessante, gostei muito dos temas que o autor trata em sua obra que é muito importante até hoje, parece ser aquele tipo de livro que acaba nos fazendo refletir muito ao longa da leitura e fiquei muito curiosa para poder conhecer a escrita do autor !!

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  9. Uau! Deve ser um livro bem impactante, ainda mais por ser baseado em fatos reais.
    Percebi toda a sua angústia lendo a resenha. Adorei!
    Com certeza procurarei mais a respeito do autor e da obra K.

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  10. Amei a resenha! Incrivel essa ideia do autor discutir com seus personagens. Acho que vou precisar de bastante atenção pra reconhecer o que é verdade na história rsrs

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  11. Olá Manu!
    Eu particularmente me pego sempre fazendo essa pergunta...O q acontece depois de tanto sucesso...
    Gostei mto! Dica anotada!
    Bjs!

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  12. Oi, Manu!!
    O livro parece ser muito interessante e bem angustiante por falar de uma época bem complicada para nós brasileiro. Gostei bastante da indicação.
    Beijoss

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  13. Olá, apesar de ser uma continuação pela resenha é evidente que o autor misturou realidade e ficção com tamanha maestria que lendo as páginas do livro podemos sentir cada sentimento dos personagens. Beijos.

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  14. Eu não conhecia este livro, achei bem diferente a história e acabei ficando bem curiosa, mas no momento não sei se leria, quem sabe futuramente.

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  15. Já estava bastante interessada em ler esse livro só pela sinopse, e agora depois de ver essa resenha fiquei ainda mais curiosa em conferi isso tudo.

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  16. Não conhecia o livro, mas já me senti interessada, primeiro por mostrar a vida de escritor e segundo por tratar de uma época sombria do nosso país que foi a Ditadura Militar. Gostei muito da sua resenha e da dia, espero poder conferir o livro.
    Abraço!
    A Arte de Escrever

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  17. Lembro da resenha do livro K,essa nova obra trabalha outra perspectiva,interessante,parte dolorosa da nossa história,gostei da estrutura usada para a narrativa.
    Também não conhecia,obrigada por mostra-la.

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  18. Oi Manu...
    Que resenha foi essa... De fato, foi de arrepiar... Realmente esse período da nossa História nos faz sentir vergonha e causa revolta... Um livro que por trazer algo que realmente ocorreu parece ser bem forte e com certeza nos levará a alguns momentos de reflexões sobre esse período de tanta tortura... Com certeza quero ler esse livro em breve.
    Beijinhos...

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  19. sabe aquela hora da vergonha?
    de dizer que não leu nada do autor e na verdade nem conhecia
    gente depois dessa resenha já vou procurar mais coisa do bernardo e sua obra o K
    é impressionante os relatos da época, realmente é uma das mais vergonhosa da nossa história, pq a mais mesmo é ver gente nos dias de hoje pedir para voltar a essa época...
    enfim...
    coloquei na minha lista do preciso para ontem!

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  20. Olá!!! Não conhecia o livro nem o autor. No entanto o livro aborda um tema bastante sensível, e acredito que realmente vale a pena para conhecer mais sobre esse período histórico do nosso país, dica super anotada.

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  21. Uau. Não conhecia a obra ainda, mas me deixou bem curiosa. De fato as feridas sangram mais e mais à medida que são cutucadas, mas certas coisas precisam ser relembradas para que não aconteçam novamente.
    Deve ser angustiante procurar pela irmã desaparecida e ainda assim criar obras a partir disso.

    Beijos,
    Kemmy - Duas Leitoras

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  22. Eu não costumo ler livros desse tipo, mas fiquei curiosíssima com a história. O jeito que o livro foi feito parece ser bem interessante, e eu com certeza gostaria de ler. Vou colocar na lista de desejados, e assim que der, pretendo ler. Tanto esse quanto o anterior, claro.

    Abraços :)

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  23. O livro parece incrível. Apesar de não ter lido o primeiro parece que não atrapalha a compressão do segundo. Parece uma leitura realmente difícil, pelo menos para mim. A ideia doa personagens virem "reclamar" de partes do livro parece respostas a possíveis criticas do primeiro livro, perincipalmente quando o personagem cita um acontecimento que não foi relatado de forma completa e foi abrandado ou oculto as piores partes.

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  24. Nossa, o livro pelo visto é muito bom, gostei da resenha e dos trechos, parece ser um livro bem tenso também, pois como você disse não é fácil saber das atrocidades que aconteceram em nosso país, gostaria de ter a oportunidade de ler.
    Beijos *-*

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  25. Olá, Manu.
    Não conhecia o livro, mas fiquei bastante interessado por sua força e por retratar um período tão sangrento e conturbado. Como gosto de história e gosto também de analisar as facetas bárbaras dos humano retratados na literatura, essa obra chamou-me bastante a atenção.
    Darei uma chance.

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