acompanhe o blog
nas redes sociais

21.8.19

O Jogo da Amarelinha [Julio Cortázar]

O Jogo da Amarelinha
Cortesia do Grupo Companhia das Letras

Como alimentar o inconformismo

De certa forma me sinto sempre um inconformado, anacrônico e desajustado. Claro está que em O jogo da amarelinha (Companhia das Letras, 592 páginas) eu me sentiria redimido. Pensei comigo: "encontrei em Julio Cortázar alguém que me entende". E imbuído deste sentimento de pertencimento emocional que me dirigi à leitura. O choque não demorou muito a acontecer.

"De certo, só o peso na boca do estômago, a suspeita física de que alguma coisa ia mal, de que quase nunca tinha ido bem."

Continuo tentando classificar o que li, classificar o inclassificável. Seria um experimento inovador ou a reunião de tudo o que foi apreendido na literatura? Duas posições antagônicas e eu aqui nesta agonia tentando decifrar. Vocês veem em que enrascada me meti.

Julio Cortázar
Título: O Jogo da Amarelinha
Autor: Julio Cortázar
Tradutor: Eric Nepomuceno
Editora: Companhia das Letras
Gênero: Ficção
Páginas: 592
Edição:
Ano: 2019
Onde comprar: Amazon

Nas palavras do próprio autor este livro é um antirromance. Um labirinto em que a gente vai se perdendo, vai negando tudo e a partir desta negação questionando a vida.Não há estética definida, não se segue nenhum cânone ou estrutura pré-estabelecida, é a destruição do romance, um salto ao mundo poético.

No início do livro somos indagados qual caminho escolher: a leitura pode ser feita de duas maneiras, seguindo a forma corrente, capítulo a capítulo, terminando no capítulo 56. Ou começando pelo capítulo 73, numa outra ordem, cheia de saltos, idas e vindas em 155 capítulos. Claramente escolhi o segundo caminho, o mais longo, não queria perder nada deste livro.

O livro é dividido em duas partes. Na primeira parte temos o personagem principal Horacio Oliveira em meio a seus colegas (eu não diria amigos) do Clube da Serpente, exilado na França, discutindo questões filosóficas, tais como o que é a realidade ou a razão, entre outras abordagens complexas que eu leitor vulgar, médio, demorei a alcançar (isso quando alcancei).

Em meio a estas reuniões temos um triângulo amoroso entre Horacio, Maga (provavelmente uruguaia, ninguém sabe, apaixonada por Horacio) aceita no grupo, porém de capacidade limitada, alguém comum em meio a intelectuais e Gregorovius (apaixonado por Maga). Horacio nega este amor ou questiona ou simplesmente não sabe o que é.

“E por todas essas coisas eu me sentia antagonicamente próximo a Maga, gostávamos um do outro numa dialética e imã e limalha, de ataque e defesa, de bola e parede. Suponho que a Maga tivesse ilusões a meu respeito, devia achar que eu estava curado de preconceitos ou que estava aderindo aos dela, sempre mais leves e poéticos.”

O melhor da primeira parte do livro é o jogo entre Horacio e Gregorovius, feito de imagens, linguagem figurada, sentimentos explosivos. Horacio é de uma infelicidade atroz, desconcertante e parece acreditar que não há saída para a salvação do homem ocidental. Gregorovius o desafia, mas não me parece à altura de tal enfrentamento, o faz por despeito, por ciúme, pela rejeição de Maga a seu amor.

“Meu amor, não te amo por você nem por mim nem pelos dois juntos, não te amo porque o sangue me leve a te amar, te amo porque você não é minha, porque está do outro lado, aí para onde me convida a saltar sem que eu consiga dar o salto, porque no mais profundo da posse você não está em mim, não te alcanço, não passo do seu corpo, da sua risada, tem horas em que me atormenta que você me ame (como você gosta de usar o verbo “amar”, com que cafonice o vai deixando cair sobre os pratos e os lençóis e os ônibus), me atormenta seu amor que não me serve de ponte, porque uma ponte não se sustenta só de um lado...”

A segunda parte me agradou mais porque está livre da intelectualidade, há ali uma grande carga emocional, um jorro de sentimentos. Horacio retorna a Buenos Aires, tentando se refazer de sua decepção em relação à vida e ao amor, procurando se reencontrar. É recebido por seu amigo Traveler, seu alter ego, alguém que na visão de Horacio encontrou um certo equilíbrio e que agora está casado com Talita em um amor prosaico e confortável. Parceria invejável.

“Seu amor por Traveler é feito de panelas sujas, de longas vigílias, de uma suave aceitação de suas fantasias nostálgicas e de seu gosto pelos tangos e pelo truco.”

Talita desperta em Horacio sensações até então latentes, ele começa a enxergar nela sua antiga paixão, Maga. Forma-se novamente o triângulo, regado a rivalidades, embates filosóficos e muita carga emocional. Admiração, amor e ódio. Não há violência física apenas verbal e Horacio caminha rapidamente para a beira do abismo. O refúgio poderá ser a loucura, uma reordenação própria do mundo para poder se encaixar.

“Um dia percebeu que seus amores eram impuros porque pressupunham essa esperança, enquanto que o verdadeiro amante amava sem esperar nada além do amor, aceitando cegamente que o dia se tornasse mais azul e a noite mais suave e o bonde menos incômodo. “

É prazeroso sim chegar ao limite do entendimento, ao supremo significado das palavras, mas estou esgotado, quero uma leitura simples e despretensiosa agora, preciso contrabalancear. A chave deste livro não está no percorrer o caminho retilíneo e ortodoxo, mas nos saltos, nas múltiplas leituras que ele oferece. É melhor sentido que compreendido.Fora razão! Bem vinda emoção!

Cortázar definitivamente não é para qualquer pessoa, mas toda pessoa deveria lê-lo, é paradoxal sim, mas só sei entendê-lo ou explicá-lo dessa forma. Não há como acompanhar tudo apenas com a inteligência, faz-se necessário sensibilidade (para Cortázar a emoção tem tanto ou mais valor que a razão).

Terminei a leitura do livro desconcertado, exausto, nocauteado. Confesso que em muitos casos me peguei brigando com Cortázar como um moleque de rua. A literatura faz isso com a gente e a boa literatura pode nos deixar de olho roxo e hematomas espalhados pelo corpo.

Minha opinião não é segura e nem serena, por isso eu teria que ter devorado 10 vezes mais livros do que já li. As palavras de Cortázar ainda estão sob o forte impacto de minha leitura bovina, mas apaixonada. Preciso me aculturar um pouco mais sobre a erudição e o humor negro dos desconhecidos hermanos.

É imprescindível romper com as estruturas que me tornaram o leitor que sou e isso é desconfortável demais. Eu deveria esquecer este livro para retomá-lo em uma nova leitura no futuro. "Esquecer é qualidade de vida", meu filho sempre me diz isso e eu acredito nele, mas ninguém me diz como faço isso. Tenho por mim que meu filho também não saiba.

“O disparo está na pistola; mas é preciso apertar o gatilho e acontece que o dedo está fazendo sinais para parar o ônibus, ou coisa que o valha.”

A frase do livro dita acima define bem meu estado de espírito, estou próximo demais do disparo, mas no momento ando distraído. Esta obra é um marco na literatura de língua espanhola e um clássico mundial. É desejo de subverter, indignação quanto à estrutura vigente, vontade de mexer consigo, de se testar. Então cuidado, melhor ler a bula antes de se aventurar.

15 comentários em "O Jogo da Amarelinha [Julio Cortázar]"

  1. Puxa, estou aqui sem saber direito o que escrever depois deste golpe(no bom sentido) Mesmo não conhecendo nada do autor, já li e vi o nome dele, citando toda esta complexidade que ele apresenta em seus enredos.
    Mas por mais que eu tenha lido e relido a resenha, fiquei me perguntando se toda a poesia descrita nas linhas do autor é de fato, escrita ou apenas sentido.
    Dá a entender que os personagens estão ali, cada um com sua importância, mas o que engloba tudo são os sentimentos de cada um, de cada situação existente.
    Acredito que seja um livro muito reflexivo!!!
    E com certeza se puder, quero muito conferir.
    Beijo

    ResponderExcluir
  2. Olá! Achei interessante e original essa coisa de a gente poder escolher a maneira como vamos fazer a leitura, gostei disso.
    Não gostei muito que a primeira parte do livro conte com um triângulo amoroso, não sou muito fã desse clichê kkkk.
    Achei a segunda parte interessante, e talvez a que eu mais vou gostar por conta da grande carga emocional e do grande sentimentalismo da mesma. Apesar de que a história volta a apresentar um triângulo amoroso.
    Fiquei interessada para conferir este clássico e toda a sua complexidade.
    Obrigada pela indicação! Beijos! ♡

    ResponderExcluir
  3. Que interessante!!! Se fosse ler O Jogo da Amarelinha, faria a leitura seguindo as indicações do autor.
    Um livro com ares de autobiografia ou um tratado filosófico sobre a vida, o Amor e seus percalços? No fim das contas não importar classificar o livro e sim mergulhar de cabeça na leitura.

    ResponderExcluir
  4. Que resenha fascinante!
    Não sabia nada sobre o livro, mas suas palavras empolgam e despertam o desejo de conhecer essa narrativa diferenciada.
    Eu começaria pelo início, apesar de perceber que começar pela segunda parte trouxe mais intensidade.

    Beijos

    ResponderExcluir
  5. Oiii ❤ Ainda não li nada do autor, só ouvi falar mesmo.
    Acho que eu faria a leitura pela forma corrente mesmo, já que não sou muito fã de vários saltos durante a leitura.
    Deve ser legal acompanhar as discussões de Horacio com os colegas, já que são de cunho filosófico e esse tipo de discussão me agrada.
    Acho que a segunda parte me agradaria mais do que a primeira, pois pra mim, sentimentalismo é mais importante que intelectualidade.
    Beijos ❤

    ResponderExcluir
  6. Olá Rodolfo!
    Um livro antirromance? Pra uma fã assídua de romances? Não sei se vai dar certo, mas a gente tenta. A obra do sem dúvida é bem complexa e exige que o leitor se empenhe em compreendê-la, as reflexões filosóficas são sempre um desafio para mim. Acho incrível essa autonomia que o leitor tem de escolher por qual caminho seguir.
    Beijos

    ResponderExcluir
  7. Olá Rodolfo!
    O autor não parece ter dificuldade para intercalar as partes filosóficas (fortementes incorporadas na história) e as dramáticas (sendo que esse triângulo amoroso envolvendo o protagonista amplia a empatia do leitor pelo personagem). Além disso, essa estratégia utilizada por Cortázar em relação aos capítulos evidência porque a obra é considerada um clássico da literatura. Por outro lado, a postura notadamente machista do autor é algo que incomoda, principalmente pela caracterização das personagens femininas, que são diminuídas em várias passagens.
    Beijos.

    ResponderExcluir
  8. Rodolfo, que resenha! Vc conseguiu passar a angústia e a luta desta leitura. Adoro quando um livro faz isso comigo: o incômodo de me tirar do lugarzinho quentinho do qual resisto a abandonar. Alguns livros tentam, poucos conseguem. Quando sigo corajosamente, como você, fico feliz comigo e sei que andei um passo em direção à leitora que quero ser.
    Estou em falta com os escritores argentinos. Tenho visto filmes dos hermanos e gosto muito, mas confesso que o medo tem me impedido de encarar os gigantes da literatura Cortázar e Borges. Acho que não serei capaz. Bobagem, eu sei, até porque há variáveis na experiência de leitura: o momento, o amadurecimento, a insistência. Imagino que sua travessia pelo Jogo da Amarelinha tenha pedido isso. E que bom que você encarou e se questionou durante. Agora pode passar de nível. Talvez relendo, talvez seguindo o outro caminho dentro do livro proposto pelo autor. Acho que eu ficaria bem curiosa. Gostei da ambientação na França, onde Cortázar viveu e morreu, imagino que esta narrativa caleidoscópica tenha muito de suas lutas sociais e políticas, sua insatisfação e preocupação com os rumos do seu país. Estou chutando aqui, pq desconheço o texto e as características do autor. Acho que exatamente por estar elevado à categoria dos autores contundentes e/ou desafiadores, ainda não veio morar na minha estante. Vontade não falta, quem sabe é você quem vai fazer essa ponte?
    Se preciso de sensibilidade para esta leitura, então tenho pontos, hahaha. E me permita discordar: nem de longe lhe falta experiência literária para o encontro com Cortázar, continue insistindo, você é bom nisso e ousadia não lhe falta.
    As frases pinçadas são bárbaras e me inquietam. Mas a do seu filho falou bem alto e continuo aqui ruminando.
    Bela resenha! E se puder lhe pedir: traga mais desafios assim, tipo um Everest da literatura. Amei!

    ResponderExcluir
  9. Olá! Acho que esse é aquele tipo de livro que é preciso o momento certo para realizar a leitura e assim não estragar uma experiência tão diferente. Confesso que a princípio estava torcendo o nariz para o enredo, já que não sou lá muito fã de triângulos amorosos, mas conforme fui conhecendo um pouco mais sobre a história, me bateu aquela curiosidade em saber mais sobre os personagens, e principalmente como será a conclusão de um enredo tão diferente.

    ResponderExcluir
  10. Olá!
    Então, devo-lhe dizer que fiquei um tanto confusa com sua resenha, mas ao contrario tem uma ótima premissa e que me deixou bastante curiosa por ele. Com certeza seria uma leitura bastante interessante para mim e seria mais sair da zona de conforto. Espero ter a oportunidade de ler.

    Meu blog:
    Tempos Literários

    ResponderExcluir
  11. Olá Rodolfo ;)
    Primeiro tenho que dizer que já vi o livro e a edição está linda demais, a editora arrasou!
    O que achei mais interessante (e bem diferente claro) foi isso de o leitor ter opções de leitura fora da ordem comum, e gostei também de o título ter haver com essa possibilidade.
    Definitivamente dá pra ver pelos seus comentários que essa não é mesmo uma leitura para qualquer um, e temos que saber respeitar também nossos momentos. Todo mundo tem vontade de as vezes só pegar um livro leve e despretensioso!
    Já li também em outra resenha que o autor tem uma narrativa bem machista, e confesso que isso provavelmente me incomodaria demais :/

    ResponderExcluir
  12. Olá!! Não sei bem o que dizer, sinceramente. O livro ao mesmo tempo que me pareceu interessante me pareceu um pouco cansativo. Ou talvez apenas a resenha seja um pouco pesada. EU sinceramente não sei o que dizer. Acho que eu estaria bem fora da minha zona de conforto lendo...Ah, essa coisa de ficar pulando sem seguir ordem de páginas tem em livros de RPG, é bem interessante!

    ResponderExcluir
  13. Oi, Rodolfo!!
    Achei O Jogo da Amarelinha um livro bem complexo e para quem não está acostumado um pouco difilcio até. Não sei se teria coragem de ler nesse momento um livro que é um antirromance. Mas gostei muito da indicação.
    Bjs

    ResponderExcluir
  14. Olá, Rodolfo
    Lendo sua resenha esse livro é tenso e complexo, tem que ler com calma para assimilar cada capitulo.
    Bom se fosse ler claro que seguiria pela segunda opção, o jogo.
    Vi algumas fotos do livro esta com uma edição de arrasar.
    Beijos

    ResponderExcluir
  15. Oi, Rodolfo!
    Que livro complexo!
    Meu Deus! Fiquei com muita vontade de lê-lo, mas também com um medão de não entendê-lo! rsrsrs
    Parece ser um livro impactante, daqueles que nos toca e surpreende de diversas formas, positivas e negativas, e que após lê-los, não somos mais os mesmos.
    Assim que der, vou tentar ler!
    bjs

    ResponderExcluir

Qual sua opinião sobre o livro? Compartilhe!

Tecnologia do Blogger.
siga no instagram @lerparadivertir