Cortesia da Editora Rocco
A desumanização
Todas as vezes em que me deparo com algo escrito, falado, filmado sobre o Holocausto minha reação é a mesma: indignação. É um sentimento que sufoca, misto de raiva e frustração, que mostra o quão impotentes ficamos diante da violência e da injustiça de natureza bélica. A ideologia nazista com seus campos de concentração é o que mais próximo podemos chegar da barbárie, é a ignorância em estado bruto e letal. É preciso lembrar e relembrar tudo o que ocorreu para não deixarmos cair no esquecimento, para não repetirmos o mesmo erro. O grande filósofo George Santayana já dizia: "Aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo".
“A história dos campos de extermínio deveria ser compreendida por todos como sinistro sinal de perigo.”
Primo Levi foi um dos poucos sobreviventes de Auschwitz. Químico de formação acadêmica, para purgar seus fantasmas, escreveu É isto um homem? (Rocco, 256 páginas), clássico testemunho das atrocidades cometidas contra um povo. Durante a leitura me questionava: O que faz do homem um homem? E fui em busca de uma explicação lógica para tal questionamento. Doutrinas científicas, filosóficas, políticas, religiosas me trouxeram mais dúvidas que respostas. Não seria incorreto afirmar que o homem o é por ser racional, dominar a linguagem e ter consciência sobre si, além de seguir um código moral.
Título: É isto um homem?Onde comprar: Amazon
Autor: Primo Levi
Tradutor: Luigi Del Re
Editora: Rocco
Gênero: Romance Histórico
Páginas: 256
Edição: 1ª
Ano: 2013
❤ Favorito
Porém tudo isso cai por terra quando um homem começa a tratar seu semelhante como se não o fosse. Isso não é agir racionalmente, é mais que apenas contraditório, é paradoxal. E que código moral seria esse que rouba o que há de humano no homem, tornando-o um saco vazio, sem vontade, sem alma? Pensar nisso dentro de uma casa aconchegante, debaixo de cobertas e com o estômago cheio é apenas um exercício de imaginação. Tente se colocar no lugar de homens sem esperança e verá que o sofrimento pode não ter medida.
“Vocês que vivem seguros / em suas cálidas casas, / vocês que, voltando à noite, / encontram comida quente e rostos amigos, / pensem bem se isto é um homem / que trabalha no meio do barro, / que não conhece paz, / que luta por um pedaço de pão, / que morre por um sim ou por um não. / Pensem bem se isto é uma mulher, / sem cabelos e sem nome, / sem mais força para lembrar, /vazio os olhos, frio o ventre, / como um sapo no inverno.”
Um dia qualquer, pela "força" de homens ligados ao nazifascismo, judeus, criminosos, homossexuais, ciganos e deficientes, são obrigados a deixar tudo pra trás e embarcar em comboios apenas com a roupa do corpo. Uns iam direto para câmara de gás, outros mais (há quem diga menos) afortunados para campos de trabalho forçado e mais cedo ou mais tarde pereciam também.
“São poucos os homens que sabem enfrentar a morte com dignidade, e nem sempre são aqueles de quem poderíamos esperar. Poucos sabem calar e respeitar o silêncio alheio. Frequentemente, o nosso sono inquieto era interrompido por brigas barulhentas e fúteis, por imprecações, por socos e pontapés largados às cegas, reagindo contra algum contato incômodo, mas inevitável. Então alguém acendia a chama mortiça de uma vela, revelando no chão um escuro fervilhar, uma massa humana confusa e contínua, entorpecida e sofrendo, erguendo-se aqui e acolá em convulsões repentinas, logo sufocadas pelo cansaço.”
Nestes campos a violência e o sofrimento pareciam não ter fim. Elie Wiesel, prêmio Nobel da Paz, outro sobrevivente de Auschwitz respondeu sobre os campos de extermínio nazista: "Ainda não conseguimos abordar este tema. Fica fora de todo entendimento, de toda percepção. Podemos comunicar alguns retalhos, alguns fragmentos, mas não a experiência. O que vivemos ninguém saberá, ninguém entenderá".
“Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem. Num instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais para baixo não é possível. Condição humana mais miserável não existe, não dá para imaginar. Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão - e, se nos escutarem, não nos compreenderão. Roubarão também o nosso nome, e, se quisermos mantê-lo, deveremos encontrar dentro de nós a força para tanto, para que, além do nome, sobre alguma coisa de nós, do que éramos.”
A "experiência" vivida por Primo Levi é angustiante, ainda assim não consegui perceber ódio em suas palavras ou qualquer sentimento de vingança. Ele conta sua história com distanciamento de quem sofreu abusos inimagináveis, mas que permaneceu vivo, mesmo que algo tenha morrido dentro de si. É preciso ouvi-lo, é preciso lê-lo, porque todos os sobreviventes têm uma história trágica pra contar, e é através dela que podemos aprender do que o ser que se diz humano é capaz.
“Ai de quem sonha! O instante no qual, ao despertar, retomamos consciência da realidade, é como uma pontada dolorosa. Isso, porém, raras vezes nos acontece, e os nossos sonhos não duram. Somos apenas uns animais cansados.”
Primo Levi aborda de forma clara a zoomorfização dos presos, a completa aniquilação dos valores morais (roubos eram frequentes, mentiras, conchavos, traições) e a espera sempre dolorida de mais um dia de trabalho pesado no frio insuportável, sem roupas ou calçados adequados, embaixo de surras e xingamentos.
“(...) Para nós, o Campo não é uma punição; para nós não está previsto um prazo; o Campo é apenas o gênero de existência que nos foi atribuído, sem limites de tempo, dentro da estrutura social alemã.
A não ser por grandes golpes de sorte, era praticamente impossível sobreviver sem renunciar a nada de seu próprio mundo moral; isso foi concedido a uns poucos seres superiores, da fibra dos mártires e dos santos.”
O tempo era intransponível, o dia iniciava duro, trabalhavam à exaustão (muitos caiam mortos ou se entregavam a uma morte que aliviaria tanto sofrimento), comiam uma sopa rala que não lhes conferia nenhum valor nutricional, pedaços de pão que serviam de troca num intenso mercado negro, voltavam ao trabalho e à noite descansavam para iniciar tudo no dia seguinte. Não se dá pra medir no relógio o quanto demora o padecimento de alguém.
“Outras coisas aprendemos ainda, uns mais, outros menos rapidamente, conforme o temperamento de cada um. A responder: Jawohl!, a não fazer nunca perguntas, a fingir ter compreendido sempre. Aprendemos o valor dos alimentos; nós também, agora, raspamos o fundo da gamela, e a seguramos debaixo do queixo quando comemos pão, para não desperdiçar migalhas. Nós também, agora, sabemos que não é a mesma coisa receber uma concha de sopa retirada da superfície, ou do fundo do panelão, e já estamos em condições de calcular, na base da capacidade dos diversos panelões, qual é o lugar mais conveniente quando entramos na fila.”
O que é o tempo para quem sente dor e fome e a morte à espreita. Poderíamos pensar que ele não existe. Mas é totalmente o contrário. As horas se arrastam como os corpos para mais um dia interminável de trabalho. O sono noturno não traz alívio, não há sonhos, apenas a consciência de que o amanhã virá novamente e que no inverno tudo será ainda pior.
“Isso é o inferno. Hoje, em nossos dias, o inferno deve ser assim: uma sala grande e vazia, e nós, cansados, de pé, diante de uma torneira gotejante mas que não tem água potável, esperando algo certamente terrível, e nada acontece, e continua não acontecendo nada. Como é possível pensar? Não é mais possível; é como se estivéssemos mortos. Alguns sentam no chão. O tempo passa, gota a gota.
(...) Na história e na vida parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa assim: "a quem já tem, será dado; de quem não tem, será tirado". No Campo, onde o homem está sozinho e onde a luta pela vida se reduz ao seu mecanismo primordial, essa lei iníqua vigora abertamente, observada por todos.”
(...) Na história e na vida parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa assim: "a quem já tem, será dado; de quem não tem, será tirado". No Campo, onde o homem está sozinho e onde a luta pela vida se reduz ao seu mecanismo primordial, essa lei iníqua vigora abertamente, observada por todos.”
O Holocausto vitimou cerca de 6 milhões de judeus, além de milhões de homossexuais, negros, deficientes físicos, mentais e comunistas. Ainda assim nos deparamos com um pronunciamento do então secretário da Cultura repetindo trechos de um discurso inflamado de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha nazista. Volto a frisar: Lembrar para não repetir é o lema! O animal-homem, ser pensante, deveria dar exemplo, mas prefere ignorar a dor de seu semelhante, fazendo da desgraça alheia pedestal da própria vaidade.
As tropas soviéticas, há 75 anos, chegavam a Auschwitz para libertar os que lá se encontravam. Primo Levi foi um deles. Mas de seus fantasmas ele jamais conseguiu se livrar. Uma alma torturada nunca será realmente livre, nunca terá paz.
Primo Levi.
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Também sinto tudo isso quando um livro que retrata um pouco dos horrores vividos na Segunda Guerra. Mas sei lá, sinto necessidade sentir isso. Uma de minhas últimas leituras(Canções de Ninar em Auschwitz) traz a parte dos ciganos que foram mortos, torturados e a luta de uma mãe alemã para proteger os cinco filhos que teve com um cigano.
ResponderExcluirUma história dolorida que recomendo demais.
Nunca imaginei que com este título, o livro trouxesse isso, Holocausto.
E como não o conhecia, claro que vai para a lista dos mais desejados.
Beijo
Angela Cunha Gabriel/Rubro Rosa/O Vazio na flor
Oi, Rodolfo! Este é um assunto que sempre chama a minha atenção. Já li tantos relatos sobre os horrores do Holocausto! E agora, lendo sua resenha, me atentei para o fato de que não me lembro de ter lido nenhum que fosse carregado de ódio, assim como você disse que o de Primo Levi também não é. E seria tão justificável, né, depois de passar por tantas coisas terríveis! Enfim... Coloquei na lista aqui.
ResponderExcluirBeijos, Entre Aspas
Olá! Livros do gênero sempre são uma leitura difícil e intensa, mas muito necessária, justamente para não esquecermos de tudo que o ser humano é capaz de fazer, e para termos uma pequena noção do que outros seres humanos foram obrigados a aguentar e tantos outros que não sobreviveram para contar suas histórias.
ResponderExcluirSempre me surpreendo com as histórias que se passam nesse período, sempre tem algo novo - e repulsivo - a mostrar.
ResponderExcluirEsse livro me parece comovente e com muitos questionamentos. Acho interessante ler algo sobre esse período e que me ensina e me leva a refletir.
Dica anotada!
Abraços
Rodolfo!
ResponderExcluirTodos seus posicionamentos empíricos sobre o assunto são mais que válidos, ainda mais porque o homem ou os seres ditos humanos, não sabem se colocar no lugar do outro e se tornam ainda mais egoístas em suas vontades.
Ter a oportunidade de ler relatos verdadeiros sobre tudo que aconteceu no Holocausto, é algo que, pelo menos para mim, faz refletir sobre fatos tão bizarros e inimagináveis, fico inconformada e ainda mais, saber que tem pessoas que acham que foram atitudes corretas e repetem determinadas falas. Inconcebível!
Amo suas resenhas.
cheirinhos
Rudy
Isto é um Homem? É um livro real, cru, devastador que conta a história real mas que em nenhum momento vemos vingança ou auto piedade nas entrelinhas.
ResponderExcluirÉ uma parte da História que gostaríamos que não tivesse existido e que mostra como o ser humano pode ser desumano
OLA
ResponderExcluirEsse periodo sombrio da humanidade não deve nunca ser esquecido
fico pensando como pode existir tamanha crueldade Nunca nunca saberemos realmente de todas as atrocidades que foram praticadas nesse local
como voce resenhou o relato desse sobrevivente não vem carregado de odio .compreensivel. Parece que a eles sobrou apenas a alma torturada
Oi, Rodolfo
ResponderExcluirEsse tipo de leitura mesmo triste muito me atrai.
Não tem nem como imaginar o sofrimento que essas pessoas passaram a ponto de se perder tudo, família, vida, dignidade, trabalho forçado, entre outras coisas.
Os poucos que sobreviveram nasceram de novo.
Quero ter chance de ler, beijos.
Olá Rodolfo!
ResponderExcluirSuas palavras refletem muito da minha opinião sobre o assunto, é realmente revoltante quando algum ato relacionado ao nazismo vem a tona, e apoiar essa ideologia é uma atrocidade tão grande, repugnante, sem precedentes. Suas resenhas sempre nos fazem refletir, sair da zona de conforto. Nunca li um livro contando a história de um sobrevivente do nazismo, depois dessa resenha acho que já está mais do que na hora.
Beijos
Olá!
ResponderExcluirFala dessa época é triste, arrebatador e complicado. Não sabemos como as pessoas sofrem e sofreram por viver aquela época. Gostei bastante do livro, fiquei muito interessada e espero conseguir ler.
Meu blog:
Tempos Literários
Nossa, parece ser um livro incrível e super intenso, já estou morrendo de vontade de lê-lo. Gosto muito de livros com relatos históricos, verdadeiros e reais, apesar de sempre sofrer muito lendo, isso me ajuda a se conectar com a pessoa e sempre nos ajuda lembrar de quão reais e próximos foram esses eventos.
ResponderExcluirOlá Rodolfo,
ResponderExcluirLivro forte, tema dolorido, mas que precisa ser debatido, o título em si traz reflexões.
Acho que também ficaria com mais dúvidas do que respostas após a leitura. Onde fica a consciência humana após atrocidades assim acontecerem com o próximo?!
É impossível não ter esse sentimento de indignação quando nos deparamos com qualquer obra que retrata esse período horroroso da humanidade, ler tudo o que essas pessoas tiveram que sofrer deve ser bem difícil, mas preciso, para que possamos refletir sobre nossos atos.
ResponderExcluirOi, Rodolfo!
ResponderExcluirAlgo escrito, filmado ou falado sobre o Holocausto também me provoca indignação, além de vergonha da humanidade, sabe?! É algo tão incompreensível para mim as atrocidades cometidas durante esse período. E pensar que ainda há hoje em dia pessoas com pensamentos nazista...
Sim, eu concordo com você, devemos lembrar pra não repetir, mostrar que a maioria - acredito e DESEJO que seja a maioria - não aceita esse tipo de atrocidade!
Mais uma vez amei o seu texto, parabéns!
Oi, Rodolfo
ResponderExcluirGostei muito da sua resenha. Me emocionou.
Também gosto de ler livros sobre o holocausto. E quero ler os do Primo Levi.
É horrível de se ler e imaginar tudo que essas pessoas passaram. É como você disse, são almas torturadas para toda a vida.
Mas precisamos ler e falar sempre mais sobre, e lutar para que isso nunca mais aconteça no mundo. Embora no Brasil coisa terríveis já estejam acontecendo.
Bjs
Eu considero esse livro tanto conto bruto mas estritamente necessário. Também me bate uma sensação de raiva e amargura quando eu vejo obras baseadas na Segunda Guerra Mundial porque me choca ver que a humanidade falhou a tal.
ResponderExcluirSempre quis ler um livro escrito por alguém que vivenciou todas aquelas atrocidades ou simplesmente um livro que relatava o tema, mas no momento o único contato que tive foi através de filmes.
ResponderExcluirDeve ser uma leitura bem pesada, mas ao mesmo tempo necessária ao meu ver, com certeza o livro irá para minha lista de leituras.