A perda que mastiga o coração
Tenho por mim que na Suécia deve haver inúmeros escritores excelentes. Mas confesso que eles só começaram a aparecer em meu radar após dois sucessos: a série "Millennium" de Stieg Larsson; o outro é o filme “Deixa ela entrar”, que assisti no original e também a refilmagem idêntica feita pelos americanos, sem tanto brilho. E é nesse ponto que queria chegar. Este filme é baseado em um romance de John Ajvide Lindqvist. Como gostei do filme, a necessidade de ler o romance pintou em doses cavalares logo a seguir.
Por uma concessão do querido amigo Danilo Babosa, que cedeu este livro de sua coleção, deixei de ler “Deixa ela entrar” e encarei A maldição de Domarö (Tordesilhas, 493 páginas), do mesmo Lindqvist. E que pancada levei. A escrita é poética, cheia de sentimentos, trabalhando os meandros, as entrelinhas das personagens e se imiscuindo cuidadosamente no fantástico, como se ele existisse de fato e de direito. Foi comparado a Stephen King pelo Washington Post, mas sua criatividade é puro Clive Barker.
Título: A Maldição de DomaröOnde comprar: Amazon
Autor: John Ajvide Lindqvist
Tradutor: Renato Marques
Editora: Tordesilhas Livros
Gênero: Suspense e Ação
Páginas: 493
Edição: 1ª
Ano: 20213
❤ Favorito
O livro é dedicado a seu pai: “Ele me deu o mar... O mar roubou-o de mim.” Por aí já dá pra perceber que vem coisa boa. O mar é personificado, um organismo vivo, uma entidade quase mítica, um ser temperamental. Fez-me lembrar de início o romance “Solaris” de Stanislaw Lem. Aliás, o título original é “Människohamn” que quer dizer “Forma humana”.
Durante um passeio entre Anders, Cecília e sua filha Maja, Simon (avô de Anders) recebe um aviso do amigo Elof que está de passagem por sua casa:
“...Elof se afastou da janela, encarou o chão e disse:
— Acho que você deve ligar para ele e dizer... que é melhor ir embora pra casa agora.”
— Acho que você deve ligar para ele e dizer... que é melhor ir embora pra casa agora.”
A partir daí o pesadelo se instala. Maja desaparece sem deixar rastros. Eles seguem suas pegadas até que elas finalizam, no meio da neve, no meio do nada, como se ela tivesse evaporado (não posso falar mais nada, isso acontece no início então não o tratei como spoiler):
“... Toda criança por volta de seis ou oito anos podia ter sido Maja. Esse pensamento o tinha reduzido ao desespero durante os primeiros seis meses após o desaparecimento dela. Todas as crianças que poderiam ter sido Maja, mas não eram... Sua menininha, e somente sua menininha, tinha sido apagada. Não existia mais.”
Já imaginaram a dor? Domarö é uma ilha e seus habitantes mais antigos têm segredos que não ousariam falar a nenhum forasteiro. Pessoas somem e o mar de aparente calmaria esconde sob suas águas poder, pesadelo, uma força desconhecida e descomunal:
“... O mar é um deus, uma divindade cega e surda que nos rodeia e tem sobre nós todo poder imaginável, e que, contudo, nem sabe que existimos. Nós somos menos que um grão de areia no lombo de um elefante, e, se o mar nos quiser, ele nos leva. É assim que as coisas são. O mar não conhece limites, não faz concessões. Ele nos deu tudo e pode tirar tudo de nós.”
É isso, nosso planeta é praticamente água, ela está em tudo. Anders sabe bem disso, perdeu seu pai para o mar. Porém, a coisa pode piorar. Anders tem sua vida jogada no lixo. Onde está aquela vida aprazível, onde está o casamento perfeito, onde está a felicidade? Anders terá ajuda apenas de sua avó Anna-Gretta, personagem simplesmente maravilhosa, moradora antiga do local e Simon, um avô postiço, que se apaixonou por Anna-Gretta e decidiu passar seus dias ao lado dela. Simon, que foi mágico carrega consigo algo que poderá alterar a vida na ilha, mais que um segredo, ele carrega poder. Ganhou a vida com o ilusionismo, mas sabe que a magia verdadeira também existe em sua forma mais inexplicável.
Anders precisa voltar pra casa, precisa estar perto de tudo o que viveu. Quem mora em uma cidade na qual não foi criado na infância, sabe bem o que é este sentimento:
“— Por que você voltou?
— Eu queria ficar perto de alguma coisa que tem algum significado.”
— Eu queria ficar perto de alguma coisa que tem algum significado.”
Só que não será tão fácil assim, afinal de contas, Anders não é nem de perto o homem que fora. Tornou-se apenas mais um farrapo:
“Seu plano para escapar da constante ânsia de beber até o estupor era bastante simples: beberia de maneira constante, mas beberia menos. Manteria um nível razoável de bebedeira desde a manhã até a noite. Com esse plano ele esperava que tanto o violento e dilacerante desejo como as pontas afiadas do mundo se tornassem mais dóceis, mais manejáveis.”
“Pontas afiadas do mundo”, muitas vezes o livro vale por essas sacadas belíssimas. O desespero de Anders é elevado ao mais alto grau. Sua filha lhe vem em sonhos? Ela ainda existe? Ela está dentro dele? O que fazer para trazer a paz?
Convivi recentemente com o fantasma do suicídio de uma amiga querida. Morreu por asfixia, enforcou-se. Então este sentimento de desespero de Anders vinha à minha mente maculado pelo acontecimento que vivi. O que levaria alguém a querer tirar a própria vida? Qual o grau de desespero?
“Ele se agachou e pegou a espingarda de dois canos, virou-a e abriu-a. As câmaras estavam vazias. Anders abaixou a cabeça. A escuridão aguçou os ouvidos e se arrastou para mais perto dele; Anders sentiu a presença como uma dor no estômago, mais forte a cada minuto.
Ele colocou os canos na boca, fechou os lábios em volta deles e dobrou o dedo sobre o gatilho. A escuridão estacou, recuou um pouco. Ele ganhou mais algum tempo.”
Ele colocou os canos na boca, fechou os lábios em volta deles e dobrou o dedo sobre o gatilho. A escuridão estacou, recuou um pouco. Ele ganhou mais algum tempo.”
Enfim, é um livro sobre a dor da perda de uma filha e como lidar com ela. Mas é muito mais que isso. É um aprendizado através da falta. É o nascimento do amor em sua forma bruta. É o escoar do tempo onde não se pode medi-lo. É preciso chorar, dilacerar-se, reinventar-se, caso contrário não haverá saída. Devemos manter em segredo algo que poderá tirar o equilíbrio da vida de um universo de famílias para salvar a si mesmo?
Convido todos a conhecer o que os suecos têm de melhor. Vocês irão se viciar na magia que o livro nos faz embarcar. Fiquei encantado e todos os livros do autor estão em minha lista de prioridades! Cinco estrelas é pouco... o cara é um mestre!!!!
Olá! Uau, que resenha e que livro hein, daqueles enredos que nos tocará profundamente, com certeza não é uma tarefa fácil lidar com a perda de um ente querido, ainda não conheço o autor, mas claro, que ele já entrou na minha lista de desejados.
ResponderExcluirQue resenha maravilhosa!!Como ainda não conhecia o livro nem de ver, fiquei encantada com tudo que li acima.
ResponderExcluirNão somente pelo ar poético que há na história, mas pela dor impressa em cada palavra, em cada sentir.
A perda é um sentimento que precisa ser sentido. Mas até que ponto se aguenta isso?
Já quero muito a oportunidade de ler essa beleza!!!
Beijo
Angela Cunha Gabriel/Rubro Rosa/O Vazio na Flor
Ola
ResponderExcluirParabens pela resenha !Deu vontade de ler o livro agora rsrs.
Realmente a Suecia revela grandes nome da literatura .especialmente o suspence.
Eu fui lendo a sua resenha e ja imaginando coisas .deve ser um livro que nos mantem grudados nas paginas tentando entender o que aconteceu .
Dica anotadissima
Rodolfo do céu !!!!! Resenha perfeita!!!!
ResponderExcluirEnquanto lia, senti dor, tristeza, amor, perda e recomeço.
Imagino que deve ser um lido em doses homeopáticas, para ser vivido e compreendido.
Oi, Rodolfo!
ResponderExcluirLendo sua resenha, fiquei me questionando sobre isso de ter lido quase nada de autores suecos, inclusive, foi justamente o livro do Larsson que li, que por sinal, é incrível. Não conhecia o autor e parece ser o tipo de livro que me agrada, envolvendo mistério e momentos mais sensíveis.
Rodolfo!
ResponderExcluirSua veia poética parece que foi ressaltada com a leitura, também não é para menos.
Lidar com a perda é algo tão difícil e complicado, cada pessoa reage de uma forma e por vezes não conseguimos entender bem cada reação.
Deve ser um livro de aprendizado e gosto muito.
Quanto a sua amiga... sinto muito... nem imagino o que leva uma pessoa a ter a 'coragem' de tirar sua própria vida...
cheirinhos
Rudy
Não conheço autores dessa nacionalidade, como é bom acompanhar blogs e conhecer coisas novas e tão lindas. Mesmo que sejam lindas num nível tão triste e devastador. Parece um tema frágil, doloroso e necessário, até.
ResponderExcluirMeus pêsames por sua amiga :(
Abraços!
Oi, Rodolfo! Ainda não tive a oportunidade de conhecer a literatura sueca. Quero mto ler a série Millennium. Não conhecia esse livro e fiquei extremamente interessada. Adoro essa ambientação de lugares remotos, cercados por segredos. A temática, sem dúvida, é algo que traz reflexões importantes. Sinto mto pela sua amiga!
ResponderExcluirMeus sentimentos pela perda da sua amiga.
ResponderExcluirSabe que até hoje não conheço a literatura sueca? Sinto que preciso mudar isso. Gostei de saber que tem uma escrita poética e que é carregado de sentimentos.
Abraços
Olá!
ResponderExcluirPra mim pareceu bastante confuso e detalhista demais esse livro, é um livro carregado de sentimentos, que o avô sente pelo desaparecimento da neta. Tem mistério e suspense, a escrita poética nesse livro, a capa é bem descritiva ao plot twist. Não conheço a literatura sueca, até o momento.
Oi, Rodolfo!
ResponderExcluirTambém tive um amigo da minha família que se suicidou por enforcamento, isso faz anos, mas ainda é algo que mexe muito conosco, todos nos pengutavamos o porque, só queriamos entender o porque... Ele era a alegria da festa, não percebemos que havia algo por trás dos seus sorrisos contagiantes... Aí ficou a culpa por não termos enxergado, o desespero por ele ter feito o que fez... Mas como calcular o grau de desespero de cada pessoa, né?! É impossível...
Não tenho coragem de ler A maldição de Domarö, de acompanhar o desespero de Anders pelo desaparecimento de sua filha... Mas eu amei sua resenha, parabéns!
Sinto muito pela sua perda, que ela amenize com o tempo, pois sei que é algo que te marca para sempre, não dá pra esquecer... Bjos!
Olá, Rodolfo
ResponderExcluirMeus sentimentos por sua perda.
Tive alguns conhecidos que morreram dessa maneira, não é fácil para a família, os amigos lidar com essa perda.
O livro apesar de abordar um tema importante e delicado, também trás o mar como personagem e um certo mistério com o mágico.
Estou muito curiosa para ler, beijos.
O jeito que você descreveu a escrita do autor me deixou muito curiosa para conhecer suas obras. Não conheço nada de nenhum autor suíço, acredita? Mas acho muito enriquecedor e importante diversificarmos a leitura assim. Sinto muito por sua perda.
ResponderExcluirO livro parece ser bem intenso, já anotei na minha lista de próximas leituras.
Beijos
Olá Rodolfo!
ResponderExcluirConfesso que minha experiência com autores suecos é inexistente, nem sei o motivo rsrs. Gostei da caracterização do mar como grande parte da história, achei bem poética mesmo a escrita do autor. Com certeza a trama mexe com a gente, são evocadas reflexões bem interessantes. Vou anotar a dica e ver se aumento o repertório de nacionalidade dos autores que leio.
Beijos
Oi Rodolfo,
ResponderExcluirHum, John Ajvide Lindqvis, gostei do filme Deixa Ela Entrar, por se tratar de uma obra baseada em outro livro dele, fiquei curiosa com A Maldição de Domarö.
Essa curiosidade só aumentou conforme a leitura da sua resenha, gostei que o início te recordou Solaris (é ótimo!, e que bonita sua reflexão "é preciso chorar, dilacerar-se, reinventar-se".
Absolutamente preciso conhecer mais sobre a literatura sueca!
Oi, Rodolfo!!
ResponderExcluirAinda não tive a oportunidade de ler nenhum livro de algum autor sueco, mas depois desse resenha incrível e essa história dar para notar que estou perdendo de conhecer um novo mundo e autores fantásticos!!
Beijos
Com certeza deve ser um livro que nos proporciona muito aprendizado, realmente lidar com a perda não é algo fácil, ainda mais quando isso acontece de forma tão abrupta, e o enredo ainda por cima parece estar repleto de mistério e suspense, dica mais que anotada!
Oi, Rodolfo
ResponderExcluirEu não conhecia o livro, nem o autor.
Mas já quero!
Que livro sensível e forte.
Parece ser uma viagem inesquecível. Que nos faz chorar, refletir e até muda coisas em nossa vida.
Sinto muito pela sua amiga, que Deus lhe console e lhe dê paz.
Abraço
Meus pêsames pela perda que não é fácil. Eu tô tentando ler mais a literatura que não seja de língua inglesa e realmente os suecos são super elogiados no suspense/policial. Esse parece ser muito visceral e sentimental e com certeza vou ler no futuro.
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