Quando a ignorância é benção
Nem sempre nos deparamos com um clássico e nem sempre este corresponde à nossa expectativa. O que dizer de Um cântico para Leibowitz (Aleph, 444 páginas)? Trabalho primoroso da editora, com capa aveludada, dois glossários, um deles contendo expressões em latim bastante utilizadas no livro e tradução impecável. Fisicamente perfeito. Passemos para o texto, vencedor do Prêmio Hugo de 1961 como melhor romance, comparável a “1984” e “Admirável mundo novo”, está além, muito além de minhas expectativas. Walter M.Miller Jr. é simplesmente soberbo. É o mínimo que posso dizer!
Título: Um cântico para LeibowitzOnde comprar: Amazon
Autor: Walter M. Miller Jr.
Editora: Aleph
Gênero: Ficção Científica Pós- Apocalíptica
Páginas: 444
Edição: 2ª
Ano: 2020
❤ Favorito
O livro que se inicia no século 26, 600 anos após uma hecatombe nuclear, perpassa 1800 anos de história futura. Seria uma parábola, uma crítica social, um aviso, uma visão? Não sei dizer. O choque é grande, preparem-se para o soco no estômago, porque ele virá.
É dividido em três partes com saltos de 600 anos. Em todas elas os monges da Ordem de Leibowitz tentam proteger e reunir fragmentos de conhecimento há muito esquecidos para que os homens possam aprender com seus erros.
Na primeira parte “Fiat Homo” (Faça-se o homem), um jovem noviço se depara acidentalmente(?) com uma relíquia que poderia ter pertencido ao padroeiro de sua ordem, o beato Isaac Edward Leibowitz, em vias de canonização, e tem-se início a saga.
Após o holocausto, novas gerações vão nascendo com mutações devido à exposição à radiação, inflamam ainda mais homens humildes que tomam para si a obrigação de destruir todo conhecimento e cultura existentes através de um movimento chamado Simplificação:
“(...)identificou-o não apenas como um homem instruído, mas também como especialista em armamentos. Com a cabeça coberta por um capuz de aniagem, ele foi martirizado no mesmo instante, estrangulado com um nó de forca não preparado para quebrar o pescoço e, ao mesmo tempo, assado vivo...”
Todos aqueles que detinham o conhecimento são caçados pelos sobreviventes e martirizados, todos os livros, apontamentos, máquinas são destruídos, porque o homem crê que o saber só poderia trazer o mal. É a volta à Idade Média. Cabe aos monges proteger o que resta copiando tudo o que encontram e neste intento enfrentam inúmeros percalços:
“Por vários segundos, o velho permaneceu pronto como um felino para entrar em combate enquanto estudava a face do adolescente, empolada pelo sol. O erro do peregrino tinha sido inevitável. Criaturas grotescas que perambulam pelas bordas do deserto costumam usar capuzes, máscaras ou mantos volumosos para esconder suas deformidades. Entre essas criaturas havia algumas cuja deformidade não se limitava ao corpo, e essas consideravam os viajantes uma fonte confiável de carne comestível.”
O final desta primeira parte é de cortar o coração, mas a segunda “Fiat Lux” (Faça-se a luz) consegue ser ainda melhor. Dá-se um salto de 600 anos e a ordem continua com seu trabalho de proteção:
“Agora, parecia que a Era das Trevas estava passando. Por doze séculos, uma pequena chama do conhecimento se mantivera viva, bruxuleante mas viva, nos monastérios. Somente agora a mente das pessoas parecia pronta para ser iluminada... alguns pensadores orgulhosos tinham afirmado que o conhecimento válido era indestrutível, que as ideias eram eternas, que a verdade era imortal... mas as culturas humanas não eram imortais e podiam perecer com uma raça ou uma era.”
O mundo está agora dividido em reinos que cultuam a conquista e clãs que defendem a barbárie e suas crenças. A ambição de conquistar o mundo não leva em conta o conhecimento, apenas o conflito de interesses, é o poder pelo poder:
“(...)ofereço um breve esboço do que o mundo pode esperar, em minha opinião, da revolução intelectual que está apenas começando... A ignorância tem sido o nosso rei. Desde a morte do império, esse rei se senta sem ser questionado no trono do Homem. Sua dinastia é milenar. Seu direito de governar agora é considerado legítimo... Amanhã, um novo príncipe reinará... O nome dele é Verdade. Seu império se estenderá por toda a Terra. E o domínio do Homem sobre a Terra será renovado.”
Todo o conhecimento preservado em papel começa a ser interpretado, mas sofre resistência daqueles que querem se perpetuar no poder e daqueles que preferem continuar na ignorância. É difícil abrir os olhos de quem não quer enxergar:
“Muitos enriquecem utilizando as trevas de sua monarquia. Eles formam sua Corte e, em nome da ignorância, fraudam e governam, enriquecem e perpetuam seu poder. Até mesmo a instrução eles temem, pois a palavra escrita é outro canal de comunicação que pode levar seus inimigos a se unir. Suas armas são afiadas pela cobiça e eles as usam com perícia...”
E seguindo os mesmos erros de seus antecessores, punem o saber e àqueles que temem de maneira exemplar:
“Hannegan II, Prefeito pela Graça de Deus... tendo considerado Monsenhor Apollo culpado de “traição” e espionagem, determinou que o núncio papal fosse asfixiado na forca e em seguida, ainda vivo, fosse retalhado, arrastado, esquartejado e flagelado, como exemplo para qualquer um que quisesse tentar desestabilizar os domínios do Prefeito. Em pedaços, a carcaça do sacerdote tinha sido atirada aos cães.”
Mais uma vez e de forma lapidar encerra-se esta parte, dando início à última e não menos espetacular terceira parte “Fiat Voluntas Tua” (Seja feita a vossa vontade). Mais um salto de 600 anos e o mundo está às voltas com mais um colapso nuclear. O medo é a única coisa que resta:
“Quando um massacre é respondido com outro massacre, estupro com estupro, ódio com ódio, não faz mais muito sentido perguntar qual machado está mais coberto de sangue.”
Quanto mais o homem avança nas ciências, mais beligerante, ambicioso e egoísta se torna. A consequência disso tudo é mais sofrimento:
“(...)Doença por radiação. Queimaduras. A mulher está com o quadril quebrado. O pai morreu. As obturaçõesnos dentes da mulher estão radiativas. A criança quase brilha no escuro. Vomitou logo depois da explosão. Náusea, anemia, folículos podres. Cega de um olho. A criança chora constantemente por causa das queimaduras...”
O que resta a todos? O que nos resta? Não quero tratar o livro como profecia, mas os sinais estão todos aí. O que faz de um livro, um clássico? Seria sua atemporalidade? Li este livro de 1961 e percebi que conserva o mesmo viço do passado, carrega resquício de sua época, mas no conteúdo, na natureza intrínseca de suas palavras ele é universal. Um Guimarães Rosa da Ficção Científica.
Nem sei se consegui expressar o quanto este livro me tocou e o quanto ele tem de poderoso, de inesquecível. Quis fazer uma resenha curta, mas seria um pecado, uma violação, não manifestar um pouco do que senti. O que posso dizer é que ninguém deve deixar de lê-lo. Sei que há uma continuação escrita a quatro mãos com Terry Bisson “Saint Leibowitz and the wild horse woman” e desde já faço um apelo à Editora Aleph para que o edite também.
Em uma única palavra: IMPERDÍVEL!
Olá,
ResponderExcluiré a primeira vez que vejo esse livro, e só posso dizer que estou muito curiosa!
Sua resenha me fez ficar louca pelo livro.
Pena que ele é um pouco caro, vou procurar por outras edições dele, para ver se fica mais barato.
beijos
Gente! Há quanto tempo eu não lia o título deste livro. Tá, vi ele uma vez numa edição super antiga na biblioteca da escola(há séculos),mas nunca consegui ler.
ResponderExcluirPelo pouco que me lembro, não tinha isso da tradução das palavras em latim. Mas talvez até tivesse e eu não dei atenção.
Fiquei tentando imaginar como é segurar uma preciosidade destas em mãos.
Deu vontade ler? Muita!
Beijo
Angela Cunha Gabriel/Rubro Rosa/O Vazio na flor
Oi, Rodolfo! O livro me pareceu, no mínimo, intrigante. É possível traçar paralelos facilmente com a atualidade, fato que o torna extremamente interessante. Um mundo onde o que prevalece é o poder, nada mais. Estamos distantes disso?
ResponderExcluirCom certeza, uma leitura que precisa e deve ser degustada aos poucos, capítulo por capítulo. Para ser devidamente compreendida e apreciada
ResponderExcluirÉ a primeira vez que leio algo sobre esse livro, tem uma premissa muito intrigante, parece ser o tipo de leitura que proporciona muitos questionamentos.
ResponderExcluirAbraços
Muito bom quando a gente vai ler a resenha e encontra logo de cara que foi um livro incrível! Isso nos motiva a continuar a resenha e até a ler. Gosto muito de clássicos, acho que sempre tem um aprendizado muito interessante pra gente.
ResponderExcluirAchei bem diferente esses saltos de anos, imagino que o autor deve ser muito bom pra conseguir unir a história e manter a atenção do leitor.
Obrigada pela resenha!!!
Essa resenha bem escrita apesar de você Rodolfo não ter expressado muito seu ponto de vista.
ResponderExcluirDepois de ler esse post Gostei da parte do salto de 600 anos apesar de parecer deixar o livro um pouco confuso. É bem diferente esse livro por ser um clássico deve ter uma escrita antiga com palavras não usadas ultimamente.
Confesso que não me interessou a leitura desse livro.
Oi, Rodolfo!
ResponderExcluirCaramba! Esse livro me parece bem complexo e arrebatador, o perfeito tapa na cara que a gente costuma levar ao ler um distopia. Haha parece ser uma história bem construída e redonda (no sentido de bem amarrada), pelo menos é o que consegui absorver da sua resenha. Eu tô numa vibe de livros clássicos e tem alguns livros do gênero na minha lista. Vou colocar esse também!
Olá! É bastante assustador ler um livro escrito lá em 1961 e perceber que ele possui muitos aspectos da nossa realidade hein, essa jornada parece ser fantástica, com muito a nos ensinar, torço para que ele fique apenas na ficção e que a Editora lance essa continuação.
ResponderExcluirRodolfo!
ResponderExcluirImagino o quanto esse livro é imperdível!
Ler algo relacionado ao pós-guerra, escrito por alguém que foi responsável por vários dos ataques na época, não tem como não inserir nessa ficção, suas próprias experiências passadas, o que dá um tom mais verídico e mais interessante de ser lido, ainda mais por tornar os monges, protagonistas responsáveis por guardarem todo documento sobre o período tão triste e doloroso.
E ainda tem as críticas políticas, maravilha.
cheirinhos
Rudy
Olá Rodolfo!
ResponderExcluirÉ perceptível em suas palavras a paixão pela história e ao expressar sua opinião sobre o livro. Eu nunca tinha ouvido falar dessa obra tão magnífica, mas ao meu ver faz valer todos os elogios. Por mais que algumas coisas sejam difíceis de ler e de aceitar, gosto quando um livro nos dá essa tapa na cara e nos faz acordar para a realidade, enxergando muito além do que nos cerca. Pode até não ser uma profecia, mas se assemelha assustadoramente com a realidade futura.
Beijos
eu amo livros classicos estrangeiros. estou procurando mais por eles, mas eess eu nao conhecia... parece muito uma pegada 1984, uma distopia que vale a pena ler.
ResponderExcluirOla
ResponderExcluirnão conhecia esse livro e embora seja escrito há tanto tempo mostra uma trama atual em que os homens fazem de tudo pelo poder e quanto mais ignorante o povo for melhor para eles. gostei dos quotes que voce escolheu embora alguns apontam o lado bem cruel e manipulador das pessoas que detem algum tipo de poder .
parabens pela resenha
Oi, Rodolfo!
ResponderExcluirNão costumo ler ficção científica, e confesso que não curto histórias pós-apocalípticas, provavelmente por isso não me interessei pela trama de Um cântico para Leibowitz... Mas eu amei a sua resenha, parabéns!
Bjos!
Oi, Rodolfo
ResponderExcluirParece ser um livro interessantísmo.
Com essa mistura de ficção científica e tudo de ruim a ser estudado do que aconteceu nas guerras.
Parece mostrar bem o quanto o homem pode ser pior a cada e a cada evolução tecnológica. Ao invés, das coisas evoluírem para o bem, parece que só partem para o mal.
Anotado!
bjs
É impressionante e ao mesmo assustador saber que um livro escrito a tanto tempo, traz uma história que nós faz questionar o que nós acontece nos dias de hoje! E em se tratando de um clássico, espero ler em breve.
ResponderExcluirOlá, Rodolfo
ResponderExcluirAs vezes me espanto como determinado livro que foi escrito por volta de quase 60 anos e continua tão atual.
Um livro com uma trama assim que fascina o leitor, não tem como não se emalogro na resenha.
Está capa está um show, vai para a lista de desejos.
Beijos