Cortesia do Grupo Companhia das Letras
A justiça em decadênciaHá tempos desejo me aventurar pela literatura russa que me é uma criatura desconhecida e intimidadora. Quando falamos em literatura russa alguns nomes vêm à mente, entre eles Liev Tolstói, autor de romances densos e famosos tais como "Guerra e paz" e "Anna Kariênina". Então é natural que eu o tenha escolhido para embarcar nesta viagem, porém não quis começar pelo que é mais conhecido e sim por suas narrativas curtas. Optei por O diabo e outras histórias (Companhia das Letras, 192 páginas), que contém cinco contos. Edição primorosa em capa dura, posfácio de Paulo Bezerra explicando a obra e orientando a bela tradução direta do russo por suas três alunas, além de breve biografia do autor e sugestão de leituras.
Título: O Diabo e Outras HistóriasOnde comprar: Amazon
Autor: Liev Tolstói
Tradutor: Beatriz Morabito, Beatriz Ricci, Mayra Pinto
Editora: Companhia das Letras
Gênero: Contos Clássicos
Páginas: 192
Edição: 1ª
Ano: 2020
No conto "Três mortes" conseguimos perceber a forte influência do iluminista Russeau em sua concepção social. É um conto simples que narra a morte distinta de uma senhora da alta sociedade, um cocheiro e uma árvore.
“Um mês depois erigiu-se um jazigo de pedra sobre a sepultura da morta. Sobre a do cocheiro ainda não havia nenhuma campa, apenas uma relva verde-clara brotava do montículo de terra, único vestígio de um homem que havia passado pela existência.”
No próprio conto inúmeras páginas são dedicadas à morte da senhora, enquanto na do cocheiro e da árvore poucas. Essa distinção é proposital e enfatiza a estratificação maldosa a que são submetidos alguns grupos sociais. Por outro lado, podemos perceber a exposição da vida hipócrita e vazia da alta sociedade em oposição à pureza e objetividade da vida pobre do campo. Tanto na vida quanto na morte, a posição social tem forte influência.
Em "Kholstómer" a vida no campo e o capital são novamente debatidos, agora na voz de um cavalo. Antropomorfismo em prol de um pensar sobre a sociedade.
“(...) os homens não orientam a vida deles por atos, mas por palavras. Eles não gostam tanto da possibilidade de fazer ou não fazer alguma coisa quanto da possibilidade de falar de diferentes objetos utilizando-se de palavras que convencionam entre si. Dessas, as que mais consideram são 'meu' e 'minha', que aplicam a várias coisas, seres e objetos, inclusive à terra, às pessoas e aos cavalos. Convencionaram entre si que, para cada coisa, apenas um deles diria 'meu'. E aquele que diz 'meu' para o maior número de coisas é considerado o mais feliz, segundo esse jogo. Para que isso, não sei, mas é assim. Antes eu ficava horas a fio procurando alguma vantagem imediata nisso, mas não dei com nada.”
Kholstómer é um cavalo de raça que nasce malhado e seu dono, para não estragar os descendentes, decide castrá-lo. Um cavalo puro-sangue ridicularizado por seus pares por ser diferente. Não fosse apenas esse sofrimento, a maneira como os homens tratam os animais e tudo a sua volta acaba por deixar o cavalo atônito. O "ter" tem importância crucial e o "ser" fica em um plano inferior.
Em "O diabo" encontramos sua escrita mais sentimental e talvez a mais preconceituosa e isso me incomodou. Quem de fato estudou vida e obra de Tolstói, inclusive Paulo Bezerra, afirma encontrar no conto traços autobiográficos. Assim como o personagem do conto, Tolstói supostamente teve um caso extraconjugal e viveu atormentado pelo fato.
“(...) Estava terrivelmente surpreso e amargurado com aquele sentimento detestável que nele se manifestava inesperadamente, do qual se considerava livre desde o casamento. Desde então nunca experimentara aquele sentimento, nem por ela, por aquela mulher, nem por qualquer outra, exceto por sua esposa. Muitas vezes em seu íntimo se alegrava por essa libertação, e eis que de repente aquele acaso, que parecia insignificante, vinha lhe revelar que não estava livre. Atormentava-se nesse momento não pelo fato de estar outra vez subordinado àquele sentimento, de desejá-la — nem queria pensar nisso —, mas porque o sentimento ainda estava vivo dentro dele, porque era preciso estar em alerta. No íntimo, não havia nem sombra de dúvida de que acabaria por vencê-lo.”
O texto não tem nenhuma novidade, um triângulo amoroso. Um rapaz, herdeiro de terras, se envolve com uma camponesa e mesmo após seu casamento não consegue tirá-la da cabeça. E é aí que entra o Tolstói pregador que encontra refúgio na religião. Achei maçante. De qualquer forma há um plus que pode fazer a diferença: dois finais.
Em "Falso cupom", temos um Tolstói fatalista, defensor de pontos de vista muitas vezes dúbios, tratando a Igreja de forma caricata, representante de um poder corrompido, senão falido. É um conto que se inicia bem, mas descamba para a panfletagem. Nem preciso dizer que também não me agradou.
Mítia, filho do presidente da Casa da Moeda, tenta com o pai um adiantamento da mesada para saldar uma dívida. O pai não lhe dá o dinheiro e ainda o escorraça. Então Mítia resolve, após dica do amigo, falsificar um cupom. Este ato vai transformar a vida de inúmeras pessoas, gerando consequências funestas a quem se envolver.
“(...) e mais uma vez lhe vieram à lembrança as ofensas do pai: "trapaceiro!"; "pois vou virar trapaceiro". Fitou o rosto de Makhin, que o olhava com um sorriso tranquilo.”
A trama vai sendo direcionada para um fim penitente, porém de forma muitas vezes forçada, como que para confirmar as posições sócio-político-religiosa do autor.
Por fim temos a redenção do autor no pequeno conto "Depois do baile", em poucas palavras: sensível e saboroso. Este mexeu comigo e é um fechamento digno. Neste temos um escritor seguro de seu ofício e de sua formação moral.
“— Pois bem, vocês dizem que o homem não pode compreender por si só o que é bom, o que é mau, que tudo depende do meio, que o meio devora tudo. Eu, porém, penso que tudo depende do acaso. É de mim que estou falando.”
Este início já nos enche os olhos e viramos rapidamente as páginas para saber o que o autor quer nos dizer. Neste conto um rapaz confessa sua paixão por uma garota e com ela dança em um baile, até que entra em cena o pai da garota, militar simpático e agradável, que arrebata a filha para uma dança e a todos encanta. Em um outro dia o rapaz assiste casualmente a uma execução pública em que, para sua surpresa, o comandante é o próprio militar, agora desagradável e violento, e isso altera todo o seu bem querer pela filha. É o acaso tomando as rédeas e manipulando a vida a seu bel-prazer.
Este livro é um painel multifacetado de contos díspares que demonstram bem a escrita algumas vezes magistral e outras panfletário-regiliosa de um dos maiores expoentes da literatura russa. Tolstói é um homem de seu tempo, suas personagens refletem ideias e ideais próprios da efervescência de sua época, porém os vícios e virtudes das mesmas são atemporais e universais, isso faz com que sua obra se torne um clássico.
Eu acredito que nunca tenha sentido muita vontade de ler Tolstói, tá, uma vez com Anna. Mas nunca levei muito a sério.
ResponderExcluirAcho complexo demais para meu cérebro rs
Mesmo gostando de contos e achando eles mais fáceis de serem compreendidos, senti que minha cabeça deu um nó enorme.
Aliás, um clássico assim acredito que deva ser para poucos leitores!
beijo
Angela Cunha Gabriel/Rubro Rosa/O Vazio na flor
Oi, Rodolfo! Da literatura russa li apenas Doutor Jivago do autor Boris Pasternak. Foi uma leitura fantástica. Tenho vontade de conhecer a obra de Tolstói. Um pouco de medo rs, mas mta vontade. O conto Kholstómer possui mto as características do tempo atual.
ResponderExcluirOlá, Rodolfo
ResponderExcluirSó li um livro da literatura russo, e era sobre a mitologia de lá
Gostei bastante, mas mesmo assim é muito fora da minha zona de conforto KKKKKK
Ainda tenho vontade de ler Anna Kariênina
Beijos
Sempre achei que a literatura russa não é algo simples de se conhecer. Acho que tem que ter uma vontade mesmo, estar aberta à experiência. Tenho um amigo que adora e já me indicou alguns.
ResponderExcluirConfesso que tenho uma resistência com contos. Os dois primeiros parecem mais diferentes, acredito que me animaria mais.
Vou me aventurar pela literatura russa com Crime e Castigo esse ano no projeto #LendoClassicoCP.
ResponderExcluirAcredito que Tolstoi possa estar na lista do ano que vem. Mas com Anna ou Doutor.
Impossível para mim não ler o post e lembrar de um YA muito fofo que li: Tasha e Tolstoi
Rodolfo!
ResponderExcluirEle sempre é um clássico.
Achei interessante a forma como ele traz os contos, casa um com uma forma de enxergar a sociedade e suas consequencias e ao mesmo tempo, se mostrando versátil e diferenciado em sua escrita.
cheirinhos
rudy
Olá Rodolfo!
ResponderExcluirNo início da resenha já desconfiei que ela fosse sua, tanto pelo modo de escrever quanto pelo livro. Nunca li nada dos autores russos, mas acredito que os contos são uma boa forma de começar. Pelo visto a fama do autor não é à toa, seus contos fazem o leitor refletir bastante sobre a sociedade e sobre a religião. Os contos que mais me chamaram a atenção foram o do cavalo e Falso cupom. Já coloquei o livro na lista de leituras de 2021.
Beijos
Olá
ResponderExcluirAinda náo li nada desse autor .Mas por tudo o que você resenhou desse conto especialmente quando trata á Igreja de maneira caricata já náo senti vontade de ler.ja ouvi falar da literatura russa e da dificuldade que por vezes podemos encontrar na leitura.
Tive a chance de conhecer a literatura russa, e eu lembro que foi uma experiência positiva. Quero conhecer a escrita do Tolstói (Anna Kariênina é o que mais me chama a atenção), então foi bom conhecer sobre esse livro de contos. Parece uma boa pedida para entrar nas obras de Tolstói.
ResponderExcluirAh, eu amei o marcador!
Abraços
Oi, Rodolfo!
ResponderExcluirNunca li nenhum livro da literatura russa, e apesar de gostar de contos e ter me interessar um pouco pelo conto Kholstómer, o do cavalo, sinceramente não me interessei em ler O Diabo e outras Histórias, acho que é porque não faz o meu estilo de leitura... Bjos!
Nunca li nada da literatura russa, acho muito complexo, talvez eu esteja enganada, mas não consigo ver de outro jeito. E Liev Tolstói é um autor que conheço somente por nome, qualquer dia tento ler algum livro dele além da resenha.
ResponderExcluirOlá! Tenho bastante curiosidade em conhecer a escrita de autores considerados “clássicos”, mas confesso que minha tentativa em ler uma dessas obras não foi assim tão bem sucedida (baita dificuldade com os nomes!), então acredito que com um livro mais curto, e de contos, o resultado possa ser diferente né.
ResponderExcluirOi, Rodolfo
ResponderExcluirQuero ler mais do autor e acho que vou gostar muito desse.
Adoro livros de contos, e aqui parece ter para todos os gostos. Uns mais sensível, outros mais secos. Mas todos reflexivos.
Bjs
Olha eu confesso que tenho certo receio em me aventurar com esses autores, mas gostei da maneira que você decidiu começar e até concordo que encarar contos seja mesmo a melhor opção, porque assim não fica tão maçante a leitura.
ResponderExcluirOlá, Rodolfo
ResponderExcluirNão li nada da literatura russa, mas tenho muita vontade de ler alguns autores russos.
Este livro reúne contos bem diferentes mas que trás reflexões como o primeiro e último conto. Muitas coisas não mudaram atualmente.
Beijos